de Castro – Ideias Mentoras

Vale dizer que, nesta difícil empreitada de uma história das ideias-mentoras do sig, tomamos emprestado a concepção, talvez um pouco fantástica, do historiador Ioan P. Couliano1. Uma concepção da história das ideias elaborada sob a forma de imagens, ou seja, ainda pouco conceituada, mas que nos oferece um caminho diferente de reflexão, diante do desafio deste tipo de historiografia.

De acordo com Couliano, para se admitir um significado, um certo sentido na história, é preciso reconhecer as dimensões sincrônicas e diacrônicas, em todo fenômeno histórico. Neste sentido, ele faz um apelo a nossa imaginação, na tentativa de construir uma nova visão da história, a partir do que denomina “objetos ideais”, entendidos como Ideias que atravessam nossas dimensões espaço-temporais, deixando em sua passagem, ideias mentoras refletidas no pensar, no agir e no fazer humanos. Objetos ideais que precisam ser identificados em sua multidimensionalidade para que possamos ter uma nova compreensão da história.

Tomando as limitações de toda sorte que sofreriam os hipotéticos habitantes de um mundo de duas dimensões, a Flatland imaginada pelo matemático Edwin Abbott Abbott2, Couliano nos convida a pensar sobre as dificuldades análogas que temos de compreender a manifestação de ideias em nosso mundo. Em sua visão, traços da presença e da influência dos referidos objetos ideais atravessando nosso plano histórico mais imediato.

Com base na ficção de Abbott, Couliano levanta assim a hipótese que estes objetos ideais atravessam a “superfície histórica” do tempo, deixando em nosso pensar, agir e fazer, registros ou traços de todo tipo. Traços que para nós, habitantes desta superfície histórica, viriam a se constituir em ideias mentoras de sistemas filosóficos, políticos, econômicos, culturais e tecno-científicos3.

Para compreender melhor a hipótese de Couliano, vale à pena resgatarmos em linhas gerais a ficção de Abbott. Em 1884, o clérigo Edwin Abbott, reitor da City of London School, escreveu uma novela surpreendente, Flatland4, que teve uma repercussão e um sucesso inesperado, inclusive inspirando a pesquisa de cientistas famosos, como por exemplo Albert Einstein.

Para Couliano, nossa tentativa de entendimento da constituição de certas ideias no “tecido histórico” da humanidade enfrenta as mesmas dificuldades dos flatlanders. Reconhecemos o objeto ideal apenas por alguns de seus traços, literalmente impressos nas obras de artistas, escritores e pensadores, ou manifestos nos atos e “fazimentos” humanos.

Com efeito, diante da manifestação desses objetos ideais em meio à vida, assumindo o contorno das ideias mentoras nos pensamentos, atos, fatos e coisas que nos cercam, não conseguimos ir além da aparência imediata, em grande parte devido à opacidade natural destes mesmos pensamentos, atos, fatos e coisas.

Se aceitarmos uma hipótese como esta de Couliano, sem dúvida a história das ideias estaria ganhando uma nova possibilidade de interpretação. Poderíamos mesmo supor que, em diferentes momentos, objetos ideais estariam cruzando lentamente a superfície do tempo, delineando um horizonte, ou até bordando na história, em sua passagem, os traços que facultariam a emergência do que denominamos “Ideias Mentoras”, que acreditamos se situar na fundamentação do pensar, do agir e do fazer humanos.

Em outros termos, registros da passagem destes objetos ideais pela história, configurariam sistemas de ideias, que disputariam o predomínio sobre o pensar, o agir e fazer humanos, em diferentes épocas e sociedades. As civilizações se constituiriam  em função, não apenas das condições de vida na Flatland, mas também do contato com os ditos objetos ideais atravessando a “superfície” da história, e podendo assim intervir de maneira imprevisível no pensar, no agir e no fazer dos Flatlanders, e na decorrente ordenação do que eles chamariam de história.

Talvez Couliano esteja praticando uma certa simplificação, fortemente dosado de “idealismo”, ao admitir uma história que se ordena apenas pelos sistemas de ideias que se condensam na passagem dos ditos “objetos ideais” através da superfície do tempo. Sua hipótese mereceria uma reflexão mais aprofundada, começando pela conceituação mais rigorosa do que sejam estes “objetos ideais”, e uma crítica mais elaborada da ação mesmos, através do que quer que possa significar sua tentativa de ver a história como uma “espacialização” do tempo. No entanto, a imagem assim construída sobre a ficção de Abbott, consegue estimular nossa imaginação, da mesma maneira que a parábola de Flatland foi capaz de fazer com tantos outros pensadores.


  1. COULIANO, Ioan P.. The Tree of Gnosis. New York: Harper Collins, 1990. 

  2. ABBOTT, Edwin A.. Flatland — A Romance of Many Dimensions. New York: Dover, 1992/1884. 

  3. Para Couliano, essa aproximação “morfológica” da história, que já tem seus antecedentes [Spengler, 1948], deve ser articulada segundo uma visão mais complexa do que aquela facilitada pela imaginária Flatland. Ou seja, de acordo com uma visão da história das ideias, que reconheça nela a ação de um processo dinâmico de proporções “extra-ordinárias” (n-dimensões). 

  4. Flatland: A Romance of Many Dimensions, publicado originalmente em 1884 sob o pseudônimo “A. Square”, teve um lugar único na literatura científica por mais de um século. Escrita por Edwin Abbott, um clérigo e matemático, especialista em Shakespeare, esta narrativa encantadora de um mundo bidimensional, alcançou renome como uma apresentação de conceitos geométricos que vinham sendo desvendados no século passado, como os das geometrias não-euclidianas, e ao mesmo tempo como uma sátira da hipócrita hierarquia social victoriana.