Seja como caixa-preta, da qual interessa representar a operação da razão e da memória que “sinalizam” as entradas e saídas de seu fazer, seja como um autômato natural, no qual neurônios cerebrais “comportam-se” como circuitos eletro-eletrônicos em uma máquina, está em jogo uma imagem de homem, animal racional1).
Esta imagem do homem como animal racional é várias vezes criticada por Heidegger como uma visão moderna da razão, ligada ao triunfo de um fenômeno paradoxal, denominado por Zimmerman (1990) “humanismo naturalista”. O paradoxo está justamente no reconhecimento do homem como um animal, idêntico a qualquer outro na Terra, e ao mesmo tempo distinto de qualquer outro, por ser dotado de razão. Uma racionalidade que lhe daria o direito de definir, julgar e usar coisas do modo que bem entender.
Este humanismo naturalista simboliza para Heidegger a auto-elevação do homem à situação de sujeito de uma empreitada para ser “mestre e senhor da Natureza”. No fundo, seria a resposta moderna e equivocada ao princípio aristotélico do “animal racional”, que atravessa o pensamento de gerações sucessivas, desde o início da metafísica ocidental até a total degeneração do logos grego, enquanto “ser capaz” de reunir e distinguir todas as coisas, em uma “racionalidade instrumental”, onde o logos é apenas um instrumento humano; e sendo assim, pode ter sua mimese perfeita e mais rápida em uma “tecnologia da inteligência”, como Lévy (1990) denomina a tecnologia da informação.
A revolução cibernética, associada ao advento da informática, é um sinal de que o logos condicionou-se à “matematização da natureza”2), à “logicização da razão” pela logística3) e à “industrialização da memória”4). Prevaleceu o “princípio de razão”, que não visa o excesso do ser, sua simplicidade, mas a possibilidade de reduzi-lo a uma identidade conceitual, intercambiável, permitindo produzir uma antecipação do devir e exercer retro-especulação (feedback) como guia deste devir. Isto é a cibernética.
Referências:
Tese de Doutorado em Filosofia (UFRJ, 2005)
Vale lembrar aqui o poeta Fernando Pessoa: “O homem não difere do animal senão em saber que o não é. É a primeira luz, que não é mais que treva visível. É o começo, porque ver a treva é ter a luz dela. É o fim, porque é o saber, pela vista, que se nasceu cego. Assim o animal se torna homem pela ignorância que nele nasce.” (Pessoa, 1988, pág. 18 ↩
Com as três referidas caracterizações da ciência moderna — ciência de factos, ser experimental e ciência que mede — não encontramos o traço fundamental da nova posição do saber. O traço fundamental deve residir naquilo que, fornecendo-lhe a medida, determina completamente, de um modo igualmente originário, o movimento-de-fundo da ciência enquanto tal: trata-se da relação-de-trabalho com as coisas e do projecto metafísico da coisalidade da coisa. De que modo devemos conceber este traço fundamental?
Atribuímos um nome ao carácter-de-fundo, que procuramos, da moderna atitude do saber, ao dizermos que a nova pretensão do saber é matemática. É de Kant a seguinte afirmação, muitas vezes citada, mas menos vezes compreendida: «Mas eu digo que, em cada teoria particular acerca da natureza, só se pode encontrar uma autêntica ciência, na medida em que se encontrar nela a matemática.» (Prefácio a Primeiros princípios metafísicos da ciência da natureza). (Heidegger, 1987/1992, pág. 74-75 ↩
O pensar sobre o pensar se desenvolve no ocidente como lógica. Esta recolheu conhecimentos particulares sobre uma maneira particular de pensar. Apenas recentemente que se fez frutificar cientificamente estes conhecimentos da lógica, e isto em uma ciência particular que se denomina “logística”. Ela é a mais especial de todas as ciências especiais. A logística é tomada atualmente em vários lugares, antes de mais nada nos países anglo-saxões, como única forma possível de filosofia estrita, porque seus resultados e seus métodos guardam uma relação segura e imediata com a construção do mundo técnico. (Heidegger, 1954/1959, pág. 33-34 ↩
O pensamento é um reconhecimento? Mas que quer dizer aqui “reconhecimento”? Ou bem o reconhecimento repousa no pensamento? Mas o que quer dizer aqui “pensamento”? A memória não é um reservatório para aquilo que pensou o pensamento, ou bem o pensamento repousa ele mesmo na memória? Qual a relação entre reconhecimento e memória? Colocando estas questões nós nos movemos no espaço daquilo que acede à linguagem no verbo “pensar” e que aflora nele. (…) O “Gedanc” equivale quase à alma (Gemüt). “muot” – o coração. Pensar, no sentido da palavra inicialmente falante, aquele do “Gedanc”, é quase ainda mais original que este pensar do coração que Pascal, séculos mais tarde, já como contragolpe ao pensar matemático, buscou reconquistar.
O pensar, compreendido no sentido de “representações” lógicas e racionais, se revela, em relação ao “Gedanc” inicial, como uma restringência e um empobrecimento da palavra de tal ordem que mal se pode imaginar a grandeza. (Heidegger, 1954/1959, pág. 146 ↩