Na análise do pensamento de Heidegger sobre a questão da técnica, a referência à técnica moderna parece indicar três sentidos correlacionados entre si: primeiro, tecnologias, dispositivos, sistemas e processos produtivos usualmente associados com o “industrialismo”; segundo, a visão de mundo racionalista, científica, utilitarista, antropocêntrica e secular usualmente associada com a “modernidade”; e, terceiro, o atual modo de compreensão e desencobrimento que torna possível tanto os processos de produção contemporâneos, a poiesis moderna, como a visão de mundo moderna que a sustenta1.
Sustentando a reflexão sobre o terceiro sentido, Heidegger entende que o primeiro e o segundo sentidos são de fato sintomas do modo contemporâneo de se acercar das coisas como dis-posições e dis-positivos; um modo de compreensão que assim as des-encobrem para exploração. Este des-encobrimento unidimensional das coisas como recursos, não resulta apenas de uma decisão humana, mas de desdobramentos dentro de uma “história do ser” no pensamento ocidental, a investigar.
O atual estágio tecnológico desta história transformou de tal maneira como as coisas são vistas e compreendidas que faz sentido falar e pensar em um meio que coopta pessoas a operar com tecnologias, segundo a ordem e a visão de homem e de mundo que, do próprio meio, emerge e domina.
Ao refletir sobre a questão da técnica Heidegger conduz, por um longo e árduo processo de pensar sua essência, desvendando as condições necessárias dessa experiência unidimensional das coisas como dis-posições e dis-positivos. No reconhecimento da com-posição no fundamento do que é a técnica, pensada desde sua origem grega, espera-se alcançar a possibilidade de uma redenção, na confrontação com o perigo e a salvação, imanentes à essência da técnica.
Heidegger parece sustentar que as atividades humanas não são de uma maneira geral referentes ou originárias de um indivíduo em si mesmo, mas sim guiadas e configuradas por um jogo histórico de linguagem e conceitos fora do controle individual. Este jogo define as categorias que configuram as possibilidades da ação humana, do conhecimento e da crença, em épocas históricas determinadas. Estes movimentos conceituais e ontológicos que se manifestam em diferentes épocas históricas, parecem indicar, por sua vez, meios onde uma “imagem de mundo e de homem” é dominante, ordenando e balizando o jogo permitido em termos de linguagem e conceitos.
A informática dá-se e propõe-se na informatização, segundo a regência e a vigência de quatro modos de dever e responder, diferentes entre si, porém pertencentes um ao outro na unidade de uma coerência. Esta unidade de coerência responde pelo dar-se e propor-se da informatização, entendida como a vigência de algo que está em vigor em um meio fundado na Modernidade.
O pleno advento da informatização em nossos dias indica, por sua vez, que este deixar-viger dos quatro modos de dever e responder que levam a tecnologia da informação a aparecer e a conduzem à posição de destaque tecnológico de uma pretensa Sociedade da Informação, mobilizam muito mais que um simples instrumento para o homem. “Rigorosamente, um instrumento nunca ‘é’. O instrumento só pode ser o que é num todo instrumental que sempre pertence a seu ser”2.
A morfogênese da tecnologia da informação, enquanto engenho de representação, ocorre segundo os princípios ontogênicos de um meio, de natureza técnica-científica-informacional. Através desta morfogênese reúnem-se e dispõem-se instrumentos que representam a razão e a memória humanas, em um único engenho, constituído em conformidade aos desígnios da técnica moderna e à rede de remetimentos a outros instrumentos deste meio, ou ainda melhor, segundo a com-posição que perfaz as dis-posições e dis-positivos deste meio.
Este engenho, por sua adoção individual e pelo decorrente agenciamento social que pratica, elevado à potência pelo dar-se e propor-se da informática, se torna concomitantemente constituído e constituinte deste mesmo meio, assegurando sua sustentabilidade e reprodução.
Heidegger já alertava, desde sua analítica do Dasein, que aquilo que lhe é mais próprio encontra-se “à distancia”, considerado de fato como “estranheza” (segundo a tradução dada por Martineau de Unheimlichkeit) a ponto que o indivíduo, o sujeito mundano, antropológica e historicamente sobre a insígnia do Ge-stell toma por si mesmo e como familiar, o que é apenas herdado da estrutura coercitiva do meio, do “mundo circundante” (Umwelt).
A investigação, nas considerações que seguem, se orienta pelas seguintes questões:
- Quais as relações que existem entre meio técnico-científico-informacional, engenho, e dar-se e propor-se da informática?
- Qual seria o sentido, se existe algum, de se reunir meio, engenho e dar-se e propor-se da informática, em uma mesma investigação?
Assim sendo a estrutura proposta para este capítulo é:
- Primeiro, entender o meio como o modo atual de redução da mundanidade do “mundo circundante” no dar-se e propor-se da informática;
- Segundo, entender os qualificadores técnico, científico e informacional, que atribuem propriedades específicas a este meio; e,
- Terceiro, e como conclusão, compreender o dar-se e propor-se da informática, como constituído em e por este meio; e, o que é mais importante, do ponto de vista da natureza da informática, sob a luz deste meio, que reflete a própria essência da técnica moderna, a Ge-stell; deste modo, evidenciar que, sendo a tecnologia da informação produto deste meio, qualquer aplicação sua, enquanto dar-se e propor-se da informática, é um agente “re-produtor” deste mesmo meio.