Através da conjunção de interesses, métodos e técnicas deste meio, a tecnologia da informação insinua-se como estandarte de um novo Discurso do Método, “o discurso do método informacional-comunicacional”. Não um discurso geral e metafísico, mas um concretamente encarnado em um engenho, pretensamente capaz de mimetizar, mais e mais, as modalidades de racionalização e memorização formalizadas desde o início da Modernidade.

Se a informática é método, é preciso reconhecer que nenhum método é inocente. Não há como separar método de pressupostos metafísicos, ontológicos e epistemológicos. Um método jamais é inocente, mesmo que não aparente abrigar nenhuma filosofia. Não poderá ser nunca a configuração de um discurso sobre coisas e homens, na medida em que estabelece uma ordem e esta demanda um fundamento. A informática como método1) dis-põe da das regras cartesianas da decomposição e recomposição, em uma démarche procedural, divide problemas em subproblemas, su-põe a ordem e a im-põe dis-pondo “dados” para seu tratamento automático. E quando o método cartesiano não funciona, busca a heurística, pro-põe formalismos para uma ars inveniendi, se volta para Leibniz e as figuras da recorrência, da rede, da tábua de múltiplas entradas2.

A tecnologia da informação é composta por instrumentos “feitos-para”. A relação entre um instrumento e sua propriedade de “ser-feito-para” não tem o caráter de uma adjudicação acidental entre um suporte e uma função, mas indica a unidade concreta e indissociável de suporte e de função, no instrumento. O complexo instrumental no engenho de representação, assim como nos remetimentos de seus instrumentos a outros no meio técnico-científico-informacional, está implicado de antemão em sua função de representação da razão e da memória humanas. Mais que implicado, a co-define, e esta função assim determinada perfaz uma totalidade única com seu suporte tecnológico, formando o engenho de representação.

No uso do engenho o meio técnico-científico-informacional se faz presente, à medida que a tecnologia se faz ausente. Quando a tecnologia se torna presente e até se apresenta como um obstáculo ao uso, costuma-se acusar o homem, usuário da tecnologia, de total despreparo e incompetência. Esta é mais uma indicação da redução do mundo imediato ao meio, levando consigo o homem como dis-posição e dis-positivo associado à aplicação da informática; o “mau funcionamento” do homem, como dis-posição e dis-positivo do engenho, justifica as razões do insucesso.

A tecnologia da informação precisa ser tomada, manipulada até o ponto de utilidade máxima e sustentada diante do homem. Este dis-positivo de representação deve ser mobilizado por uma ocupação3) informacional-comunicacional, no constituir-se do dar-se e propor-se da informática, realizando o “jogo de articulação dos quatro modos de responder e dever, que deixam chegar à vigência o que ainda não vige”, a informatização. Neste processo, dis-posições e dis-positivos de um meio são também acionados.

O Dasein na ocupação informacional-comunicacional na situação de uso da tecnologia da informação é um modo particular de ser-no-mundo, denominado ser-no-meio. No lidar com os instrumentos que com-põem esta tecnologia segue-se um método informacional-comunicacional, onde um jogo de conceitos e linguagem determina o dar-se e propor-se da informática em uma situação dada. Na peculiaridade desta ocupação arregimentam-se também outros instrumentos ou elementos do meio técnico-científico-informacional.

Dada a natureza de engenho de representação, da tecnologia da informação, a configuração digital de qualquer ente é definida pelo método informacional-comunicacional como caminho único e universal. A transposição da razão e da memória segundo as dis-posições e dis-positivos do engenho, para sua posterior exploração, é assegurada pelo método que dirige os procedimentos e a codificação desta dis-ponibilidade sob a forma dados simbólicos (representando a memória), passíveis de serem manipulados por “programas de computador” (representando a razão).

Na ocupação informacional-comunicacional da tecnologia da informação dis-põe-se sobre a tecnologia da informação, o Dasein e seu mundo circundante, reduzido ao meio. No computador, tudo se registra como um simulacro informacional-comunicacional do ser-no-mundo, constituindo uma nova unidade, ser-no-meio-técnico-científico-informacional.

A constituição progressiva e interativa de um processo de informatização se dá por essa dis-posição contínua do ser-no-mundo na ocupação informacional- comunicacional. Capturado em termos de dados simbólicos e instruções lógicas, armazenados na tecnologia da informação, as determinações do ser do Dasein devem agora ser vistas e compreendidas a priori com base na constituição ontológica de um ser-no-meio, parafraseando Heidegger.

O meio constituinte-constituído pela tecnologia é a dis-ponibilidade informacional-comunicacional; um modo em que vige e vigora tudo que o desencobrimento explorador realizou pela trans-posição da razão e da memória humanas em dis-posições e dis-positivos na informatização.

A tecnologia da informação, pela manipulação do Dasein, que busca seu “posicionamento”, segundo o “método”, reflete este mesmo Dasein e o mundo circundante, sempre segundo uma problemática; ou seja, segundo a abordagem, a interpretação e a tradução de um problema qualquer, criado de modo paradoxal pelo próprio meio técnico-científico-informacional. Instala-se assim uma espécie de autismo; uma triangulação recursiva entre meio-problema-tecnologia.

O problema emerge do meio dis-posto segundo uma formulação direcionada para sua configuração como problemática de natureza informacional-comunicacional. Parte de sua solução já está, por sua vez, nas dis-posições e dis-positivos da tecnologia da informação pronta para ser ativada.

O homem tem, no entanto, a ilusão de conduzir e arregimentar os instrumentos do engenho na solução de um problema informacional-comunicacional, promovendo como causa efficiens a coalescência das demais causas responsáveis neste dar-se e propor-se da informática. Mas, de fato, algo no estatuto original do engenho, sobre o qual se constitui este dar-se e propor-se, parece estar, o tempo todo, guiando e iluminando o caminho.

A natureza da tecnologia da informação, fundada em seu estatuto técnico, operando em sintonia com a com-posição que ilumina o meio onde a ocupação informacional-comunicacional se dá, aponta assim algo da máxima relevância. A tecnologia enquanto engenho de representação, está dis-posta para responder a qualquer problemática, bastando apenas ser acionada e manipulada por um homem, que se dis-ponha de modo subserviente a seu estatuto técnico.

O dar-se e propor-se da informática constitui-se segundo um ser-no-meio seguindo um método informacional-comunicacional, em uma ocupação própria, nivelada e ditada pelo estatuto técnico da tecnologia da informação, suas dis-posições e dis-positivos, e, certamente pela com-posição que ilumina o meio onde ocorre este dar-se e propor-se.

É assim que a estrutura de dados simbólicos, a linguagem de programação e as características técnicas do equipamento, enquanto dis-posições e dis-positivos, manipulam a conformação dos dados que nele são registrados e as possibilidades de tratamento destes dados, segundo a funcionalidade prevista na construção tecnológica.

As dis-posições e dis-positivos que compõem o engenho, segundo sua constituição a priori pelo meio, ordenam e limitam o poder e as possibilidades de qualquer ocupação informacional-comunicacional, que assim abdica de sua situação de ser-no-mundo para a pobre situação de ser-no-meio-técnico-científico-informacional, produzido e produtor da tecnologia.


  1. O “metá” contido em “método” (“metà-hodós”) diz “de acordo com”, “junto de”, i. é, “de acordo com” ou “junto de” o caminho. […] Entre método e fazer, ou seja, entre método e ação ou atividade, há uma conexão de ordem fundamental ou essencial – um co-pertencimento. […] A pergunta pelo método disso ou daquilo é a pergunta pelo modo de fazer ou mesmo do fazer-se disso ou daquilo. Assim, o método é o movimento de exposição disso do qual o método é método! Há, então, um co-pertencimento entre método e a própria coisa em questão que, na verdade, é o co-pertencimento ou a mesmidade da coisa e do seu fazer-se, do seu instaurar-se ou expor-se, i. é, do seu vir-a-ser isso que ela é. (FOGEL, Gilvan. Da solidão perfeita. Escritos de filosofia. Petrópolis: Vozes, 1999, pág. 31 

  2. CHAZAL, Gérard. Le miroir automate. Introduction à une philosophie de l’informatique. Seyssel: Champ Vallon, 1995 

  3. A demonstração fenomenológica do ser dos entes que se encontram mais próximos se faz pelo fio condutor do ser no mundo cotidiano, que também chamamos de modo de lidar no mundo a com o ente intramundano. Esse modo de lidar já sempre se dispersou numa multiplicidade de modos de ocupação. Como se viu, o modo mais imediato de lidar não é o conhecimento meramente perceptivo e sim a ocupação no manuseio e uso, a qual possui um “conhecimento” próprio. A questão fenomenológica vale, sobretudo, para o ser dos entes que vêm ao encontro nessa ocupação. (HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo I. Trad. Marcia Schuback. Petrópolis: Vozes, 1998, pág. 114-115 

Essência da Informática