de Castro – A morfologia

A morfologia ganha uma nova aplicação como critério classificatório, não valorizada na visão original de Goethe, da qual se utilizou Humboldt (é controvertida a dependência que Humboldt pode ter tido de Goethe). Como muito bem nos esclarece a filósofa Maria Filomena Molder1:

Com efeito, um dos nós centrais dos estudos naturais e estéticos de Goethe diz respeito a constituição de uma linguagem teórica, adequada à contemplação e descrição do aparecimento e transformação das formas. Esse nó, no caso dos estudos naturais, assenta na necessidade de distinguir entre uma pura nomenclatura, baseada numa sistematização organizada por divisões e subdivisões, que procuram responder às diferenças e semelhanças encontradas entre os seres, e uma língua que propicie e restitua o vislumbre e o reconhecimento da metamorfose própria de cada forma que se manifesta.” (p.185)

De qualquer maneira, podemos afirmar que, a partir de Humboldt, o significado da noção e do termo2 meio ganham uma orientação muito peculiar, se associando a diferentes conceitos como: associação de espécies (a co-presença de diferentes espécies em um meio); estação (meio de vida de uma planta); biocenose (conjunto de espécies que vivem no mesmo meio, e se nutrem mutuamente, fazendo concorrência entre si); ecossistema (compreendendo os organismos e os fatores físicos de um meio); etc.

Cabe mencionar, ainda dentro da perspectiva organicista da noção de meio, duas abordagens que tem se mantido ativas ainda hoje, mesmo que sob novas roupagens: a visão morfológica e a visão sistêmica.

A visão morfológica, mais antiga que a sistêmica, teve um forte impulso no final do século XVIII, dentro do Romantismo alemão, através da figura de Goethe, como ainda a pouco mencionamos. Em um imenso estudo sobre o pensamento morfológico de Goethe, a filósofa portuguesa Maria Filomena Molder3, nos oferece uma interpretação ímpar desta visão da Natureza, unificando todos os fragmentos científicos e filosóficos dispersos por sua imensa obra.

Para Molder, a observação da metamorfose não era nova, aliás, a originalidade é um valor fraco para Goethe, para quem “a história do conhecimento humano repõe ciclicamente os próprios motivos do conhecimento, englobando os seus próprios alvos e correspondendo à solicitações próprias daquilo que é para ser conhecido”. Entre várias referências mais antigas à esta temática da morfogênese, poderia se citar o próprio Lineu, que dedicou um terço da sua obra Philosophia Botanica à Metamorphosis vegetabilis .

Molder reconhece no pensamento morfológico de Goethe um relançamento de temas metafísicos, obrigatório em todas as investigações de natureza organicista, levantando questões relativas à metamorfose (em que cada forma é formação), à forma em si, à formação em si, à visibilidade e invisibilidade da forma (vide seu tratado sobre as cores), ao ciclo das formas (nascimento-crescimento-morte). Questões, que segundo Molder, nos exigem uma tarefa de compreensão maior da “epifania diferenciada e unificável daquilo que há enquanto há”. Não se trata em geral da redução indeterminada da multiplicidade à unidade, mas de no terreno concreto das formas singulares, consideradas nos seus pormenores, não perder de vista à redução que está ocorrendo, ousando determiná-la a cada vez.

Em Goethe reúnem-se, por conseguinte, os dois grandes movimentos conceituais que Platão e Aristóteles levaram a cabo: por um lado, a procura de um modelo originário, de um arquétipo das morfologias visíveis, por outro, a ideia de um propósito imanente à forma, uma enteléquia, onde se levantam questões de teleologia, expressas através da compreensão da uniformidade dos corpos dos seres, pela descoberta de similitudes estruturais.

Cada forma é algo em aproximação histórica de si própria e da nossa possibilidade de a conhecer, reconhecendo-se através das suas transformações. Apenas na sua efetividade se capta, portanto, a essência de uma coisa, através de um movimento, de um impulso configurativo da história completa das suas ações. A essência da uma coisa apreende-se na medida em que conseguirmos recolher uma imagem sinóptica das sua formas manifestadas, tal como o caráter de um homem unicamente pela reunião expressiva das suas ações e realizações se pode descrever.4

Mais recentemente, no inicio deste século XX, D’Arcy Thompson retomou de forma magistral o pensamento de Goethe, se contrapondo a forma simplista do transformismo da teoria evolucionista de Darwin. Depois de argumentar em prol do resgate da ideia de causa final, ou teleologia, D’Arcy afirma e tenta comprovar em todo seu trabalho que a forma de qualquer porção de matéria, viva ou morta, e as mudanças de forma que são aparentes em seus movimentos e em seu crescimento, podem ser descritas em todos os casos como devidas a ação de forças.

Em resumo, a forma de um objeto é um ‘diagrama de forças’ , neste sentido, pelo menos, de que através dela podemos fazer um juízo ou deduzir as forças que estão agindo ou agiram sobre ele: neste sentido estrito e particular, é um diagrama – no caso de um sólido, das forças que foram imprimidas sobre ele quando sua conformação foi produzida, junto com aquelas que permitiram a ele reter esta conformação; no caso de um liquido (ou de um gaz), das forças que estão no momento agindo sobre ele para restringir ou equilibrar sua mobilidade inerente. Em um organismo grande ou pequeno, não é apenas a natureza dos movimentos da substância viva que devemos interpretar em termos de força (de acordo com a cinemática), mas também a conformação do organismo ele próprio, cuja permanência ou equilíbrio é explicado pela interação ou equilíbrio de forças, como descrito na estática.5

Ao longo deste século o pensamento morfológico foi adotado sempre como um contraponto, de tipo organicista, à visão mecanicista da Natureza, e recebeu um impulso ainda maior, através da tentativa de matematização do processo de metamorfose, realizada, por exemplo, por René Thom6 com sua Teoria das Catástrofes7 e seus seguidores8.

O biólogo Rupert Sheldrake9 também aportou uma séria contribuição à visão organicista, e em particular ao pensamento morfológico, promovendo o conceito de campo morfogenético , semelhante aos campos conhecidos pela física, no sentido de que corresponderiam a regiões invisíveis de influencia, dotadas de propriedades inerentemente holísticas, que estariam dentro e em torno dos organismos, contendo dentro de si uma hierarquia aninhada de campos, dentro de campos.

Dentro desta visão, Sheldrake desenvolveu também uma ideia nova, bastante revolucionária, a de ressonância mórfica . Partindo da hipótese que os sistemas auto-organizados, em todos os níveis de complexidade, sejam estruturados por campos mórficos , dentre os quais estariam os campos morfogenéticos, Sheldrake sugere que indivíduos do passado, podem influenciar os campos mórficos dos indivíduos atuais, que lhes correspondem, segundo o princípio da ressonância mórfica, entendida como a influencia do semelhante sobre o semelhante, através do espaço e do tempo, por meio da informação.


  1. MOLDER, Maria F. (1995), O Pensamento Morfológico de Goethe. Lisboa, Imprensa Nacional. 

  2. Sinônimo de palavra ou expressão, o termo (do latim medieval terminus : o que se encontra ao final do ato de apreensão) tem um sentido geral que lhe dá a língua, e ao mesmo tempo pode cobrir diferentes acepções, segundo os domínios considerados, ou os sistemas nos quais se insere. Resgatar a noção guardada pelo termo, nos permite tratá-lo de maneira mais precisa. A noção (do latim notio : aquilo através do qual a inteligência conhece) restitui ao termo uma maior precisão, que nos permite até desvendar a matriz de ideias que se repercute nos diferentes usos e aplicações do termo. Assim sendo, uma noção, embora ainda polissêmica como o termo original, passa a ser descritiva, empírica, sem ser ainda uma construção como o conceito. A noção expressa uma certa generalidade, ainda contaminada por juízos de valor. 

  3. MOLDER, Maria F. (1993), A Metamorfose das Plantas – Goethe, Lisboa, Imprensa Nacional. MOLDER, Maria F. (1995), O Pensamento Morfológico de Goethe. Lisboa, Imprensa Nacional. 

  4. MOLDER, Maria F. (1993), A Metamorfose das Plantas – Goethe, Lisboa, Imprensa Nacional. 

  5. THOMPSON, D’Arcy Wentworth (1966), On Growth and Form. Cambridge, Cambridge University Press. 

  6. THOM, René (1983), Paraboles et catastrophes. Paris, Champs Flammarion. THOM, René (1991), Prédire n’est pas expliquer. Paris, Flammarion. 

  7. “[…] os fenômenos que são o objeto de uma disciplina científica dada aparecem como acidentes de formas definidas em um espaço dado que se poderia chamar o espaço substrato da morfologia estudada. […] Em tal ótica, o primeiro objetivo consiste em caracterizar um fenômeno enquanto forma, forma ‘espacial’. Compreender significa portanto antes de tudo geometrizar. Mas ter recurso à geometria, é igualmente ter recurso a uma certa abstração, de idealização…” THOM, René (1983), Paraboles et catastrophes. Paris, Champs Flammarion. 

  8. PETITOT, Jean (1991), La philosophie transcendantale et le problème de l’objectivité. Paris, Osiris. 

  9. SHELDRAKE, Rupert (1995), Morphic Ressonance & The Presence of the Past – The Habits of Nature. Rochester, Park Street Press. SHELDRAKE, Rupert (1993), O Renascimento da Natureza. São Paulo, Cultrix.