Fogel (Conhecer) – Conhecer Coisas

Gilvan Fogel, «CONHECER É CRIAR»

Tenho diante de mim uma laranja e, apesar de parecer supérfluo, pergunto: o que é a laranja?

Um botânico, um agrônomo, provavelmente técnico da EMATER ou de O Globo Rural (!!), responde-me algo mais ou menos assim: “é um fruto da espécie citrus sinensis, com a forma de uma grande baga esférica, dividida em vários septos ou gomos e cuja casca é de um amarelo dourado (cor de laranja!) no estado de maturação”. Surpreende-me que, para o sitiante que a planta e a cultiva, assim como para o caminhoneiro que a transporta, ela, a laranja, é subsistência, sobrevivência — pão para seus filhos e famílias; ela é vida, é um extraordinário sentimento de elevação e de redenção para o enfermo, para o convalescente, que sorve seu sumo saboroso; dois guris a surrupiam do cesto e, na farra deles, ela é bola de futebol; abandonada na fruteira ou jogada sobre a mesa ela é, ela “vira” “natureza morta” (“vida serenada”) na tela de um pintor, de um Cézanne; ela é ainda tão-só a “cor laranja” que embriaga algum descuidado contemplador do horizonte no crepúsculo, na alba; ela é também uma “porcaria”, uma “droga”, uma “sujeira” para o varredor de rua, que a encontra esmagada, pisoteada e toda mosquitos pelo chão, depois da feira…

Surpreende-me o fato de que a laranja, na verdade, não é tão tranquilamente laranja, isto é, não é tão uniforme, tão unidimensional ou tão univocamente laranja. Para espanto nosso, constata-se que há muitas laranjas… E eu volto a perguntar: o que é realmente a laranja? Qual é de fato a essência da laranja? O que é afinal a laranja em-si?

Espanta-me que ela realmente não é nada em-si — nenhuma coisa final, absoluta, definitiva, mas que ela é um aparecer e mostrar-se ora como isso, ora como aquilo, ora como aquilo outro. Enfim, sempre como isso ou como aquilo, isto é, sempre já desde uma “pré-ocupação” ou desde uma ótica, uma perspectiva, um interesse. A laranja — isto é, uma ou toda e qualquer coisa — é, na verdade, essa “pré-ocupação”, essa perspectiva, esse interesse. É aí que ela é e está; é aí e como esse aí que ela se define, determina-se. Vê-se então que, de fato, isso que aqui se está chamando “pré-ocupação”, perspectiva ou interesse é o lugar da coisa ou sua gênese — enfim, é a “coisa” in statu nascendi. Daí que “coisa” nenhuma é realmente coisa, mas… interesse, perspectiva, “pré-ocupação”.

O que comumente se denomina o “profundo”, a “essência” de uma coisa não é, portanto, uma propriedade, um atributo real das coisas, mas — isso veremos detalhadamente adiante — sua dimensão metafísica, isto é, de transcendência e de “ultrapassamento” da “coisa” na sua objetividade tosca, no seu lado ou aspecto “coisista” ou objetivista, para se realizar num modo de ser possível, que se chama também ótica, perspectiva, interesse. E aí, nessa instância ou dimensão, que se realiza isto que chamamos conhecer. Adiante, ao nos determos nessa questão, mostrar-se-á como metafísica é um modo de ser do homem respectivamente do real, de todo real possível e que é o mesmo que conhecer. Por enquanto, temos que conhecer, que começamos dizendo ser a busca do ser ou da verdade das coisas, mostra-se agora para nós como o trans-portar-se ou o trans-por-se para o interesse, a perspectiva ou a “pré-ocupação” que põe e instaura o que se mostra ou aparece (o real!) tal como se mostra ou aparece. Conhecer, portanto, é, de algum modo, repetir e cofazer essa hora, esse instante, esse in statu nascendi da coisa. Conhecer é realmente um “co-gnoscere” um “con-naître“, um “co-nascer” com as coisas, com o real.

A questão para nós, agora, é esta: o que é propriamente interesse, perspectiva? Como é ou qual é a natureza, o modo de ser desse interesse, dessa perspectiva, dessa “pré-ocupação”? Há que esclarecer e detalhar isso para se excluir a conclusão apressada, à qual certamente alguém já chegou, segundo a qual, então, tudo é “subjetivo” ou antropológico, quer dizer, antropocêntrico (seja psicológica, seja transcendentalmente). Não, não é essa a constituição ou o modo de ser de interesse, de perspectiva. Esperemos.