Domingues (Grau Zero) – A episteme no século XVII: o projeto da mathesis universalis

DOMINGUES, Ivan. O grau zero do conhecimento. O problema da fundamentação das ciências humanas. São Paulo: Edições Loyola

Que define, com efeito, a Episteme no século XVII?, perguntam Husserl, Koyré, Lenoble, Heidegger, Foucault e Gusdorf. E respondem:

1) O maternalismo, dizem Husserl e Koyré, aproximando Galileu de Platão; Husserl, mostrando-nos que a partir de Galileu se tem a substituição do mundo da vida (Lebenswelt) pela sombra dos conceitos e das equações, a substituição da “carne” da existência pelo universo dos seres de razão das matemáticas. Resultado: em consequência da dissociação das qualidades primárias e das qualidades secundárias, tem-se a clivagem do homem e do mundo; em consequência da redução do vivido ao pensado, a imagem concebida (o conceito) é mais real que a realidade vivida a que se reporta, dando lugar a uma inversão de valores cujos ecos ainda hoje estão longe de estar desaparecidos1.

2) O mecanicismo, diz Lenoble, aludindo a Mersenne, em quem ele vê o pai da ciência moderna e não propriamente em Descartes, mostrando-nos que o traço por excelência da Episteme moderna é a recusa de conhecer a natureza íntima das coisas para ater-se tão-só ao modus operandi dos fenômenos, forma de conhecimento em que bastam a força e a composição matemático-mecânica dos movimentos2.

3) A associação matemáticaexperiência, diz Gusdorf, referindo-se a Galileu, a quem ele vê na origem de um traço fundamental da ciência moderna: a matematização do empírico, e não a Descartes, cuja metafísica de filósofo como que é desproporcional ao método matemático da física, permanecendo sempre infiel ao modelo mecanicista. A seus olhos, Galileu não se limitou a descobrir, com a ajuda da luneta, o relevo da lua, as fases de Vênus, as manchas do sol, os satélites de Júpiter etc., mas soube associar, como ninguém antes de Newton, as matemáticas à experiência, de sorte que, nele, a física em sua totalidade se constitui como um sistema fechado sobre si mesmo, alheia a toda metafísica, e cuja inteligência se justifica em virtude da inteligibilidade da razão matemática, e apenas dela3.

4) O projeto de uma mathesis cum taxinomia, dirá Foucault, pondo num mesmo plano Descartes e Newton, Leibniz e Lineu, e nos mostrando que eles compartilham do mesmo projeto de uma ciência universal da ordem e da medida, fundada numa álgebra das representações e num sistema convencionalista dos signos: a) mathesis: “Quando se trata de ordenar as naturezas simples, recorre-se a uma mathesis cujo método universal é a Álgebra”; b) taxinomia: “Quando se trata de pôr em ordem as naturezas complexas (as representações em geral, tais como elas são dadas na experiência), é necessário constituir uma taxinomia e para tal instaurar um sistema de signos”4.

5) O prometeísmo, dirá Heidegger, pondo em relevo a metafísica da subjetividade, cuja origem ele atribui a Descartes, e nos convidando a ver no recolhimento do homem no interior de si mesmo não a perda do mundo ou algo puramente negativo – a substituição do mundo da vida pela imagem pensada, de que nos fala Husserl – mas a afirmação do novo modo de ser do homem consoante esses tempos novos – o prometeísmo: “Reduzido a si mesmo – escreve Heidegger –, o homem dispõe a maneira pela qual ele se vai situar em relação ao ente enquanto objetivo. Aqui começa esta maneira de ser que consiste em pôr os poderes humanos enquanto espaço de medida e de realização, pelo senhorio e posse do ente em sua totalidade. A época que se determina a partir deste acontecimento não é somente, para a contemplação retrospectiva, nova em relação à precedente, mas igualmente ela se põe a si mesma e formalmente como a época dos tempos novos. Ser novo, eis quem pertence ao mundo tornado imagem pensada”5.

Eis diante de nossos olhos os leitmotive destas diferentes hermenêuticas da modernidade – de Koyré a Heidegger, de Foucault a Gusdorf. Entretanto, o que se ganha com os scripts do belo romance da modernidade, neste vaivém constante de uma hermenêutica prospectiva, onde temos tudo a ganhar, relativamente uma hermenêutica retrospectiva, onde não temos nada a perder? Pouca coisa, parece-nos: o esclarecimento da motivação antropológica do novo sistema de conhecimento, sem dúvida; mas muito pouco no que tange à gramática do saber e ao regime da verdade.

Com efeito, nem mecanicismo, nem matematismo, nem prometeísmo dão conta verdadeiramente da Episteme no século XVII; porém, o projeto de uma mathesis universalis, uma ciência geral da ordem e da medida, que busca nas matemáticas o novo padrão de racionalidade com que pensar a forma do saber à maneira de uma axiomática do pensamento puro (matematismo), e, numa nova ontologia dos princípios, os elementos com que pensar a matéria do saber à maneira de uma metafísica do objeto (no sentido de Descartes: objeto dado ao sujeito): a alma para o mundo do espírito, e a extensão para o mundo das coisas (ontologismo). Vale dizer, o projeto de uma mathesis universalis que só é universal e em sua generalidade aplica-se indistintamente às ordens qualitativas e quantitativas porque associa a matemática à metafísica. Por um lado, um matematismo de estrita observância, que quer que a verdade do discurso nasça do jogo dos conceitos no interior do discurso em sua discursividade e nele encontre o index da verdade ou sua medida: a prova demonstrativa. Por outro, uma ontologia a priori dos princípios, que quer que a verdade do discurso conte como a verdade da coisa, e, ao se referir ao em-si da coisa, prefere as continuidades ontológicas e as grandezas (a alma, que é una e indivisível; a extensão, que é parte extra parte e divisível etc.) às suas descontinuidades e diferenças específicas (os “acidentes”).


  1. Cf. GUSDORF, G. La révolution galiléenne. Paris: Payot, 1969, v. 1, p. 136 

  2. GUSDORF, G. op. cit. p. 150 e 165 

  3. GUSDORF, G. Introduction aux sciences humaines; essai critique sur leurs origines et leur développement. Paris: Ed.Ophrys, 1974, p. 82 

  4. FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. Lisboa: Portugália Editora, s/d, p. 104 

  5. Apud GUSDORF, G. La révolution galiléenne. v. 1, p. 136