Luijpen – A redução fenomenológica e o “mundo vivido”

LUIJPEN, Wilhelmus Antonius Maria. Introdução à fenomenologia existencial. Tr. Carlos Lopes de Mattos. São Paulo: EDUSP, 1973

A intenção de Husserl com a fenomenologia foi sempre a de encontrar uma base, um fundamento, para qualquer enunciado das ciências positivas. Esse desiderato implica a convicção de que as afirmações das ciências precisam de um fundamento, ou seja, que não o possuem em si mesmas. Tal coisa não quer dizer, para Husserl, que as ciências devem ser rejeitadas, mas que no cultivo delas se acham latentes e estão, em princípio, já respondidas muitíssimas questões, se bem que as ciências, em si, nem sequer as possam pôr. O físico como físico não pergunta a respeito da essência de seu conhecimento físico, não questiona qual o sujeito e o objeto específico da física, nem, tampouco, quais as condições de possibilidade de seu relacionamento. Como físico, pode permitir-se não suscitar essas questões, mas, nesse caso, há um ponto de vista a partir do qual se pode e se deve dizer que a ocupação do físico é “ingênua”.1 Evidentemente, isso também não significa que o físico não é crítico, mas que ainda é possível e necessário um modo totalmente diverso de ser crítico. O físico é crítico em relação à experiência científica, mas não indaga o que é propriamente a experiência científica e, muito menos, o que é a experiência em geral.2

A filosofia, portanto, deve mostrar o fundamento último dos juízos científicos. Trata-se da ciência do radical, ou antes, que deve ser tal. Husserl, com efeito, está convicto de que a filosofia não o é de fato. Cabe ao filósofo exprimir o que é essencialmente a experiência. Mas a filosofia incorreu num impasse, porque também ela adota uma ideia da experiência que não pode seguramente valer como base dos juízos científicos. Desde Descartes e Locke admite-se na filosofia a convicção de que a experiência deve ser representação e que o sistema de representações objetivas há de ser encontrado nas ciências naturais. A filosofia afundou no cientismo, de modo a não poder ser mais encarada como ciência do radical. O legítimo filosofar é algo totalmente diverso do pensamento da ciência positiva,3 o que os filósofos deixaram de ver. Portanto, o brado de Husserl, “volta às próprias coisas”, não pretende dizer que as ciências não se ocupam com as próprias coisas, mas visa a filosofia. Esta se afastou de sua realidade.4

A procura da autêntica ou filosófica concepção a respeito do cogito, do pensamento e da experiência leva Husserl à sua ideia de intencionalidade, cujas implicações descrevemos em parte. Semelhantes implicações já nos puseram de certo modo na pista da resposta sobre o significado da “redução fenomenológica”. Antes, porém, de fixar seu sentido exato, demoremo-nos um pouco numa concepção da redução fenomenológica ultrapassada na própria fenomenologia.

Enquanto Husserl definia como intencionalidade o sujeito-como-cogito, punha entre parênteses a existência de fato do sentido mundano, para o qual se orienta o sujeito. Eis a primeira acepção em que Husserl usou o termo “redução”: Einklammerung des Seins (colocação do ser entre parênteses). Essa redução consistia em que Husserl retinha seu juízo sobre a existência real do sentido mundano.5 O que o levou a essa suspensão do juízo ?

Conforme De Waelhens, a causa foi a teoria do conhecimento do século XIX, em luta com o problema crítico, ou seja, com a questão de saber se uma realidade exterior corresponde aos conteúdos, noções e conceitos do cogito retirado, isolado e fechado em si mesmo.6

Segundo o idealismo, o sentido é um conteúdo do cogito, não distinto dele em seu ser; de acordo com o realismo, o sentido é totalmente distinto do cogito e seu ser é perfeitamente estranho a ele. Husserl não quis se imiscuir na controvérsia entre realistas e idealistas, porque suspeitava que iria encalhar aí. Pensou poder escapar disso com sua fenomenologia, i. e, poder executar suas análises intencionais, mesmo sem optar por nenhuma das duas direções, sem se pronunciar a respeito do ser do sentido: eis o motivo de pô-lo entre parênteses. O próprio Husserl ainda não vira que, definindo o conhecimento como intencionalidade, tal como ele a entende, impossível se torna “pôr entre parênteses” o ser do sentido. Aquele que admite a intencionalidade, já decidiu sobre o ser do sentido. Até o filósofo não vira que a colocação do ser do sentido entre parênteses só é possível em se partindo da pressuposição de que o cogito é uma realidade isolada, repleta de conteúdos. Mas essa hipótese precisamente é rejeitada pela afirmação da intencionalidade.

Só aos poucos Husserl se foi tornando consciente da inconsistência de suas concepções. A consequência é que nas suas obras posteriores aparecem sempre menos os parênteses do ser do sentido, para afinal desaparecerem completamente. Em Heidegger e Merleau-Ponty não se encontram mais vestígios deles.

Mas enquanto ocorrem sempre menos os parênteses em Husserl, acentua ele sempre mais a necessidade de uma redução fenomenológica. Isso significa que suas ideias a respeito da redução se modificaram. O filósofo permanece fiel à finalidade de sua fenomenologia: encontrar um fundamento para todo e qualquer enunciado científico. Pouco a pouco foi vendo que todos os enunciados das ciências pressupõem uma experiência muito mais fundamental que a científica, ou seja, que, sem a conhecer explicitamente, vivem dessa experiência muito mais fundamental e, exatamente por isso, sabem com precisão sobre o que falam. Essa experiência muito mais fundamental é o sujeito-como-cogito, com suas numerosas atitudes (Einstellungen) diferentes, e o correlativo mundo vivido (Lebenswelt).7

Concebida como volta à nossa mais original experiência de nosso mais original mundo, a redução fenomenológica é essencial para a filosofia fenomenológica. Essa redução é realizada por quem se coloca dentro da existência e reconhece as implicações disso. Executando-a, vai-se de fato achar uma base para todo e qualquer enunciado científico. Assim, se se trata da percepção de uma árvore florida no prado, posso invocar em meu socorro várias ciências, mas só sei o que significam todos os resultados de todas as investigações científicas conhecendo o significado da percepção “comum” de uma árvore florida no prado. Não falassem as ciências afinal do mundo em que o sol se levanta e se deita, do mundo em que há diferença entre um morto e um assassino, do mundo em que existem moças bonitas e rapazes guapos, de um mundo em que, pelo simples fato de ir às férias, posso chegar a saber o que é o mar, um rio ou uma montanha, nesse caso nem os mais inteligentes cientistas saberiam sobre o que falam propriamente.100 As ciências não têm nenhum fundamento em si mesmas. Não sabem sobre o que falam, a menos que admitam serem afinal simples momentos explicativos de uma experiência muito mais original que a científica e de um mundo mais original que o desvendado pelas ciências. O mundo primariamente real e objetivo é aquele em que o físico está bem ou mal casado, no qual tem ou não tem amigos, sente calor ou frio, pouco importando o que diz o termômetro, e no qual, pouco antes do pôr do sol, compra ainda um livro de astronomia onde se lê que o sol não se põe, mas está parado.

No mundo vivido há uma grande diferença entre o vermelho brando de um tapete, o vermelho viscoso do sangue coalhado, o sadio vermelho de um rosto jovem e viçoso e o vermelho sedutor de uns lábios pintados. Se na ciência se fala dos “movimentos da laringe e ondas sonoras”, o cientista só saberá que com isso discorre sobre a fala, admitindo saber o que é falar, devido ao fato de já ter falado com alguém. Se na ciência se fala de “certos movimentos das fossas nasais e certas contrações dos cantos da boca, junto com um piscar de olhos”, só sabe o cientista que se trata de um sorriso pelo fato de já alguma vez ter experimentado o que significa alguém lhe haver sorrido.

A volta às próprias coisas é o retorno ao mundo vivido, e ela inclui que o sujeito-como-cogito, existente, com suas muitas atitudes, seja conhecido como a mais original experiência do mundo.8 Eis em que consiste a redução fenomenológica. A experiência do mundo vivido foi e é caracterizada pelas ciências como “puramente” subjetiva e relativa. Na realidade, entretanto, é o fundamento último (letztbegruendende). É por essa experiência que os que se ocupam com as ciências positivas sabem sobre o que falam. Não se pode, pois, querer substituir os significados do mundo vivido pelo sistema de significados descobertos pelas ciências, pondo a experiência da ciência positiva em lugar da experiência mais original que sustenta a primeira.9 O cientismo é uma filosofia da experiência que esquece sua própria origem,10 e uma ciência sem filosofia não sabe sobre que fala.11


  1. “Toda ciência da natureza é ingenua por seus pontos de partida”. E. Husserl, art. cit., p. 298. 

  2. “Mas, por mais que este modo de crítica da experiência nos possa contentar, enquanto a nossa posição estiver dentro da ciência natural e o nosso pensamento orientado por ela — pode e deve existir ainda uma crítica da experiência de caráter inteiramente diverso, pondo em dúvida toda e qualquer experiência e, ao mesmo tempo, o pensamento científico-experimental”. E. Husserl, art. cit., p. 299. 

  3. “A filosofia, porém, está numa dimensão totalmente nova. Precisa de pontos de partida completamente novos e de um método de todo novo, distinto por princípio de toda ciência ‘natural’”. E. Husserl, Die Idee der Phänomenologie, Fünf Vorlesungen, Husserliana II, p. 24. 

  4. A. de Waelhens, De la phénoménologie à l’existentialisme, em: Le choix, le monde, l’existence, Grenoble-Paris, s. d., p. 42. 

  5. “Em toda investigação epistemológica… cumpre realizar a redução epistemológica, isto é, marcar com o índice da exclusão toda transcendência que a acompanha, ou com o índice da indiferença, da nulidade epistemológica, com um índice que diz: a existência de todas essas transcendências, quer creia eu nelas ou não, não me interessa aqui, nem é aqui o lugar de julgar tal coisa: isso está fora de questão”. E. Husserl, Die Idee der Phänomenologie, p. 39. 

  6. A. de Waelhens, Une philosophie de l’ambiguïté, L’existentialisme de Maurice Merleau-Ponty, Louvain, 1951, Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception. 89-93. 

  7. “… todas as finalidades, até as teóricas das ciências ‘objetivas’, porque nelas estão as ‘evidências’ que o cientista usa continuamente, ou, falando de modo universal, o mundo das coisas evidentemente compreensíveis e tidas como verdadeiras e reais, à maneira da 5ó£a, é o solo no qual primeiramente se pode desenvolver qualquer ciência objetiva; com uma palavra, o mundo vivido, ‘puramente’ subjetivo e relativo, em seu fluxo nunca suspenso de valores do ser, cujas transformações e correções é — por mais paradoxal que isso pareça — o solo em que a ciência objetiva constrói seus quadros de ‘definitivas” e ‘eternas’ verdades, de juízos válidos para sempre e para todos”. E. Husserl, Die Krisis der Europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie, Husserliana VI, p. 465. 

  8. “Voltar às próprias coisas é voltar a esse mundo antes do conhecimento de que o conhecimento fala sempre e a respeito do qual toda determinação científica é abstrata, significativa e dependente, como a geografia em relação à paisagem onde antes aprendemos o que é uma floresta, um prado ou um rio”. Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception, Avant-propos, Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception. II-III. 

  9. “Todo o universo da ciência se constrói sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência com rigor, apreciando-lhe exatamente o sentido e o alcance, cumpre despertar primeiro essa experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda”. Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception, ibid. 

  10. “A ciência clássica é uma percepção que esquece suas origens e se julga acabada”. Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception, p. 69. 

  11. “Uma ciência sem filosofia não saberia, em rigor, de que fala . Merleau-Ponty, Sens et Non-sens, p. 195.