de Castro – A Questão da Tecnologia da Informação

Foi o filósofo Martin Heidegger quem, em suas densas análises sobre a técnica, elevou-a a sua devida importância como tema filosófico, capaz de oferecer uma direção para justa compreensão do que é o homem. Nele, pela primeira vez, se promove a necessidade de um questionamento da técnica que conduza a uma relação livre, possibilitando abrir o Dasein1 à essência (Wesen) da técnica:

A técnica não é igual à essência da técnica. Quando procuramos a essência de uma árvore, temos de nos aperceber de que aquilo que rege toda árvore, como árvore, não é, em si mesmo, uma árvore que se pudesse encontrar entre as árvores.

Assim também a essência da técnica não é, de forma alguma, nada de técnico. Por isso nunca faremos a experiência de nosso relacionamento com a essência da técnica enquanto concebermos e lidarmos apenas com o que é técnico, enquanto a ele nos moldarmos ou dele nos afastarmos. Haveremos sempre de ficar presos, sem liberdade, à técnica tanto na sua afirmação como na sua negação apaixonada. A maneira mais teimosa, porém, de nos entregarmos à técnica é considerá-la neutra, pois essa concepção, que hoje goza de um favor especial, nos torna inteiramente cegos para a essência da técnica.2

A questão “o que é a informática?”, enquadrada segundo a questão da técnica proposta por Heidegger, põe de lado tudo que se tem escrito sobre a informática até então. Perseguindo suas indicações, a resposta satisfatória à questão “o que é a informática?”, está na procura desta essência naquilo que rege, que vige em toda tecnologia da informação, enquanto tecnologia da informação. Evidentemente um caminho oposto àquele que segue toda a literatura técnica sobre a informática: meros discursos sobre a funcionalidade, a estrutura ou as aplicações desta tecnologia.

A essência da informática não tem nada de técnico, segundo Heidegger. Portanto, não se chega a lugar nenhum pensando sobre tudo que se tem dito e escrito até hoje sobre a informática. Apenas um questionamento que abra um caminho do pensamento, uma trilha pelo incomum, pode nos preparar esse relacionamento livre com a informática, realizando a experiência de seus limites.

O questionamento trabalha na construção de um caminho. Por isso aconselha-se considerar sobretudo o caminho e não ficar preso às várias sentenças e aos diversos títulos. O caminho é um caminho do pensamento. Todo caminho de pensamento passa, de maneira mais ou menos perceptível e de modo extraordinário, pela linguagem. Questionaremos a técnica e pretendemos com isto preparar um relacionamento livre com a técnica. Livre é o relacionamento capaz de abrir nossa pre-sença à essência da técnica. Se lhe respondermos à essência, poderemos fazer a experiência dos limites de tudo que é técnico.3

É fato que a informática manipula símbolos, ou, melhor, dados numéricos ou categóricos, referentes a atributos de entes, atos ou fatos, doravante denominados dados simbólicos. É fato que os dados simbólicos representam, ou se presentam em lugar das coisas objetivadas, e são assim passíveis de serem operados pela informática, como um conjunto de atributos destas coisas. É fato que a significação não está no dado simbólico e nem na coisa simbolizada, mas na correspondência dada na representação efetuada. É fato que a formatação destes dados simbólicos em sinais binários permite a aplicação de uma lógica e de um cálculo sobre os mesmos. É fato que na combinatória final, oferecida pela informática, de uma lógica representando a razão humana operando sobre dados simbólicos representando, por sua vez, a memória humana de uma coisa, potencializa-se o poder de cálculo sobre a realidade. Pela constatação destes fatos, que indicam algo da natureza da informática, há uma aproximação de sua essência, mas esta continua sempre velada pelo que tem de teor técnico nos fatos citados.

“A técnica não é igual a essência da técnica”, alerta Heidegger. Mas mesmo diante desta advertência, não há como percorrer as veredas da questão da informática, sem investigar sua natureza, por vezes até cedendo reflexão a sua densidade técnica. No entanto, tendo sempre em vista o que aponta a questão da técnica, na reflexão de Heidegger, é possível sustentar a questão da informática de modo a não perdê-la no “informático”, e desde já antecipar algumas asserções que apontam para sua essência, que serão verificadas ao longo desta investigação:

  • A informática é o computador enquanto tecnologia ou implementação de uma técnica ou fazimento de natureza informacional e, ao mesmo tempo, a informática não é o computador, enquanto implementação deste fazimento que o constitui e institui, pois açambarca e mobiliza muito mais que o computador, ordenando e sendo ordenado pelo meio técnico-científico-informacional, sob a vigência da informatização, onde rege soberana a Ge-stell, a com-posição, a essência da técnica moderna.
  • A informatização, enquanto aplicação da informática, “designa nada mais nada menos do que o modo em que vige e vigora tudo que o desencobrimento explorador atingiu”4 nos Tempos Modernos, no tratamento do ente enquanto “coisa informacional-comunicacional”, configurada no âmbito da razão lógico-matemática como algoritmo computacional e no âmbito da semiologia do real na “industrialização da memória”, como base de dados simbólicos5.
  • A tecnologia da informação, enquanto dis-positivo de representação da razão e da memória humanas, faz eco à metafísica da modernidade, onde técnica e representação são os princípios que configuram uma era, lhe conferindo “uma interpretação determinada do ente e uma acepção determinada da verdade”, segundo Heidegger6.
  • O dis-positivo de representação se oferece como um sintetizador de ilusões informacionais e comunicacionais em um “dis-por explorador” da razão e da memória, através do qual se manifestam as modernas aplicações da informática, como modos desta exploração: processamento de texto, planilhas de cálculo, Internet, correio eletrônico, etc.

  1. Na tradução de Ser e Tempo em português este termo chave foi traduzido por “pre-sença”, como pode ser visto nas citações desta obra. Mas em todo este texto este termo não foi traduzido, preferindo-se sua forma original, Dasein

  2. HEIDEGGER, Martin. Ensaios e Conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel e Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2002, pág. 10 

  3. ibid., pág. 10 

  4. ibid, pág. 21 

  5. STIEGLER, Bernard. La technique et le temps. La désorientation. Paris: Galilée, 1996 

  6. HEIDEGGER, Martin. Chemins qui ne mènent nulle part. Trad. Wolfgang Brokmeier. Paris: Gallimard, 1962, pág. 99