Dissolvidos os ingredientes do meio técnico-científico-informacional, é hora de reuni-los de novo, coagulando-os segundo uma perspectiva diferente, mais afim com a crescente emergência do ciberespaço e os novos tipos do dar-se e propor-se da informática.
É interessante, neste sentido, acompanhar o pensamento de Pierre Lévy (1995), quando expõe uma espécie de ciclo de evolução do que chama “saber coletivo”; algo que definitivamente ocupa e reorganiza o espaço e o tempo da humanidade, ou seja, o meio humano, ao longo de sua constituição. Sua visão se cerca de um certo utopismo, bastante comum entre os entusiastas da “Era da Informação”, mas deixa, no entanto, em alguns momentos, transparecer as anomias que se revelam neste processo, e, por conseguinte, os riscos associados a cada bifurcação desta trajetória.
Para começar, Lévy define o meio como “espaço antropológico”. Em outros termos “um sistema de proximidade (espaço) próprio ao mundo humano (antropológico) e logo dependente de técnicas, significações, linguagem, cultura, convenções, representações e emoções humanas”. Tendo em vista esta dependência de elementos endógenos ao próprio espaço antropológico, e, portanto, à exaltação da vida que nele se manifesta, o espaço antropológico se constitui segundo planos de existência que se entremeiam: o espaço da terra, o espaço do território, o espaço das mercadorias e o espaço do saber.
O espaço antropológico de Lévy reconhece e afirma o sentido da vida na sua constituição, na medida que vê nas interações entre a vida dos seres humanos e seu meio físico e propriamente humano, a matriz na qual se produzem, se transformam e se geram continuamente espaços antropológicos, heterogêneos porém entrelaçados ou entremeados. Estes espaços plásticos, que se tecem mutuamente em suas interações, compreendem, por sua vez, signos que os sustentam, representações que os evocam, pessoas que os conduzem, e toda a situação em seu conjunto, tal qual é produzida e reproduzida nos atos-fatos realizados por seus integrantes.
A proposição de Lévy poderia ser reformulada do seguinte modo: os espaços vividos se movimentam e se conformam ao redor de objetos e ações que eles mesmos compõem e organizam, ao mesmo tempo, que são por estes objetos e ações também compostos e organizados. Visto por outro ângulo, os indivíduos vivos tramam espaços, pela composição e troca de imagens, palavras, conceitos e coisas, impondo uma certa estrutura, segundo a intensidade afetiva ou de vida, engajada neste processo. Resultam assim espaços diferenciados, efêmeros ou duráveis, formais ou informais, institucionais ou não.
Para Lévy, reconhece-se a importância de um evento qualquer, na ordem intelectual, técnica, social, histórica ou geográfica, por sua capacidade de reorganizar as proximidades e as distancias em um espaço, ou seja, por seu poder de instaurar novos espaços-tempo ou novos sistemas de proximidade. Em virtude de alguns eventos maiores na civilização ocidental, em particular na modernidade, se constituíram de forma acelerada diferentes espaços antropológicos. Passamos a viver em uma multiplicidade de espaços diferentes, cada um com seu sistema de proximidade particular (temporal, geográfico, afetivo, linguístico, etc.). De tal forma que uma entidade qualquer pode estar próxima de nós em um espaço, e bem longe em outro. O fato é que, cada espaço, mesmo interpenetrado por outros, guarda ainda sua topologia e sua axiologia, ou seu sistema de valores ou de medidas, particular.
Os espaços emergem do interior da relação da vida humana como seu meio, como mundos vivos, e são continuamente engendrados pelos processos e interações que se desenvolvem dentro desta relação fundamental. Eles parecem se desenvolver de forma irreversível, ganhando consistência e autonomia e se tecendo mutuamente. Entretanto eles não devem ser entendidos como estratos de infra ou de superestruturas, que se determinam mecanicamente ou que se interagem dialeticamente. Cada espaço é um plano de existência da vida, onde se identificam frequências e velocidades, ou seja, ritmos determinados.
Lévy identifica o “espaço cibernético” como o mais recente plano de existência da vida. A trama que este constitui vem se imiscuindo de forma acelerada, por entre os demais espaços, beneficiando, a principio, apenas um pequeno estrato social, a elite dos “bem sucedidos” nos espaços territorial e transacional.
Formado assim pela inserção estratégica de tecnologias da informação e da comunicação no espaço das transações, tecnologias originalmente concebidas e voltadas para o exercício das funções de armazenamento, controle, e transmissão de dados, o ciberespaço começa a oferecer aqui e ali, acesso a um novo espaço antropológico, maciçamente promovido como indispensável à comunicação e ao saber, e até mesmo à vida1).
Como muito bem coloca o Lucien Sfez2, o atual discurso (logos) sobre a técnica, eloquentemente expresso sobre a moderna tecnologia da informação e da comunicação, só assume toda esta relevância “numa sociedade que não sabe mais comunicar consigo mesma, cuja coesão é contestada, cujos valores se desagregam, uma sociedade que símbolos usados em demasia não conseguem mais unificar”. A sedução da tecnologia é tanta, que o centro de gravidade da sociedade moderna está na sua qualificação de sociedade da comunicação ou da informação, entendido este qualificador como um fim em si mesmo, articulado sobre o aparato tecnológico que o sustenta. Como afirma Sfez, o que surpreende é que até o século passado não se falava em comunicação ou informação, pois estes elementos se encontravam no princípio constitutivo da própria sociedade.
Segundo Lucien Sfez três atitudes de pensamento se inscrevem na sociedade atual, se justapondo progressivamente, para criar e valorizar o ciberespaço. Primeira atitude: o discurso da razão instrumental, onde o homem diante da tecnologia que criou, utiliza-a como uma ferramenta; COM a tecnologia o ser humano desempenha as tarefas que determina, se submetendo à disciplina das atividades para as quais concebeu o meio de realização eficaz e eficiente, através das ferramentas que desenvolveu e aplica; o engenho, o instrumental, é na verdade a ponta de um iceberg, sua sombra se estende além de sua materialidade física, e seu papel de intermediário acentua o peso da representação que impõe como interface com a realidade.
Segunda atitude: pela adoção contínua, o instrumento se torna familiar, um contexto natural que passa a compor com o ser humano uma “estrutura orgânica”, onde a tecnologia está NO mundo, e este último, mediado por ela, é partilhado e vivenciado; o aparato tecnológico que sustenta o ciberespaço, conduz ao declínio do espaço físico, de toda extensão, em prol da tele-presença; até mesmo da “intrusão intra-orgânica da técnica e de suas micro-máquinas no seio do vivente” (VIRILIO, Paul. L’Art du Moteur. Paris: Galilée, 1993).
Terceira atitude: o domínio absoluto do discurso da técnica, regendo a visão do mundo, criando até uma certa subjetividade individual e social, ao nível de sua própria identidade (talvez alimentando uma certa esquizofrenia); a Creatura do Dr. Frankenstein, retrata muito bem, embora de forma alegórica, este clone de ser humano e social que vem sendo construído à medida que os atos e fatos de nossa vida são apropriados pelas tecnologias da informação e da comunicação.
Em uma brilhante análise, Lucien Sfez denomina esta nova fase de “tautismo”, uma combinação de autismo e tautologia, onde “num universo onde tudo se comunica, sem que se saiba a origem da emissão, sem que se possa determinar quem fala, o mundo técnico ou nós mesmos; nesse universo sem hierarquias, salvo confusas, em que a base é o cume, a comunicação morre por excesso de comunicação”.
Tocando, localmente, cada indivíduo e traçando inúmeros caminhos, diretos e inversos, do local ao global, nossas redes, tecnológicas, tendem, portanto, pouco a pouco, a substituir as antigas grandes instancias ou instituições encarregadas do global, Estados, Direitos, Igrejas, Bancos e Bolsas, Escolas e Universidades. […]
Donde sua capacidade de destruir ou substituir, para o pior ou o melhor, o político, o religioso, o direito, a cultura e o saber; as relações de violência e de força; o comercio e o dinheiro; três instancias encarregadas, desde a aurora da história, de fazer aparecer e forjar o liame social. (SERRES, Michel. Atlas. Paris: Julliard, 1994, pág. 203-204 ↩SFEZ, Lucien. Crítica da Comunicação. Tr. Maria Stela Gonçalves Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Edições Loyola, 1994 ↩