Para um melhor entendimento da morfogênese da tecnologia no meio técnico-científico-informacional é necessário resgatar a visão morfológica proposta por Goethe. Mais antiga que a sistêmica, esta visão teve um forte impulso no final do século XVIII, dentro do Romantismo alemão. Em um estudo sobre o pensamento morfológico de Goethe, a filósofa portuguesa Maria Filomena Molder (1993 e 1995), oferece uma interpretação ímpar desta visão da Natureza, unificando todos os fragmentos científicos e filosóficos dispersos pela imensa obra de Goethe. Para Molder, a observação da metamorfose não era nova, aliás, a originalidade é um valor fraco para Goethe, para quem “a história do conhecimento humano repõe ciclicamente os próprios motivos do conhecimento, englobando os seus próprios alvos e correspondendo às solicitações próprias daquilo que é para ser conhecido”. Entre várias referências mais antigas à esta temática da morfogênese, poderia se citar o próprio Lineu, que dedicou um terço da sua obra Philosophia Botanica à Metamorphosis vegetabilis. Molder reconhece no pensamento morfológico de Goethe um relançamento de temas metafísicos, obrigatório em todas as investigações de natureza organicista, levantando questões relativas à metamorfose (em que cada forma é formação), à forma em si, à formação em si, à visibilidade e invisibilidade da forma (vide seu tratado sobre as cores), ao ciclo das formas (nascimento-crescimento-morte). Questões, que segundo Molder, nos exigem uma tarefa de compreensão maior da “epifania diferenciada e unificável daquilo que há enquanto há”. Não se trata em geral da redução indeterminada da multiplicidade à unidade, mas de no terreno concreto das formas singulares, consideradas nos seus pormenores, não perder de vista à redução que está ocorrendo, ousando determiná-la a cada vez. Em Goethe reúnem-se, por conseguinte, os dois grandes movimentos conceituais que Platão e Aristóteles levaram a cabo: por um lado, a procura de um modelo originário, de um arquétipo das morfologias visíveis, por outro, a ideia de um propósito imanente à forma, uma enteléquia, onde se levantam questões de teleologia, expressas através da compreensão da uniformidade dos corpos dos seres, pela descoberta de similitudes estruturais.
Cada forma é algo em aproximação histórica de si própria e da nossa possibilidade de a conhecer, reconhecendo-se através das suas transformações. Apenas na sua efectividade se capta, portanto, a essência de uma coisa, através de um movimento, de um impulso configurativo da história completa das suas acções. A essência de uma coisa apreende-se na medida em que conseguirmos recolher uma imagem sinóptica das sua formas manifestadas, tal como o caráter de um homem unicamente pela reunião expressiva das suas acções e realizações se pode descrever. (MOLDER, Maria Filomena. O Pensamento Morfológico de Goethe. Lisboa: Imprensa Nacional, 1995, pág. 17-18)
Mais recentemente, no inicio deste século XX, D’Arcy Thompson retomou o pensamento de Goethe, se contrapondo à forma simplista do transformismo pregado pela teoria evolucionista de Darwin. Depois de argumentar em prol do resgate da ideia de causa final, ou de teleologia, D’Arcy afirma e tenta comprovar em todo seu trabalho, que a forma de qualquer porção de matéria, viva ou morta, e as mudanças de forma, que são aparentes em seus movimentos e em seu crescimento, podem ser descritas em todos os casos como devidas à ação de forças “invisíveis”.
Em resumo, a forma de um objeto é um ‘diagrama de forças’, neste sentido, pelo menos, de que através dela podemos fazer um juízo ou deduzir as forças que estão agindo ou agiram sobre ele: neste sentido estrito e particular, é um diagrama – no caso de um sólido, das forças que foram imprimidas sobre ele quando sua conformação foi produzida, junto com aquelas que permitiram a ele reter esta conformação; no caso de um liquido (ou de um gaz), das forças que estão no momento agindo sobre ele para restringir ou equilibrar sua mobilidade inerente. Em um organismo grande ou pequeno, não é apenas a natureza dos movimentos da substância viva que devemos interpretar em termos de força (de acordo com a cinemática), mas também a conformação do organismo ele próprio, cuja permanência ou equilíbrio é explicado pela interação ou equilíbrio de forças, como descrito na estática. (THOMPSON, D’Arcy Wentworth. On Growth and Form. Cambridge: Cambridge University Press, 1917, pág. 11)
Concluindo, nada melhor que outra imagem do artista plástico M. C. Escher (1898-1972) que parece retratar esta conclusão de morfogênese da informática segundo o meio e reprodução deste segundo a tecnologia da informação. Nesta litogravura, duas mãos (uma desenhando outra) emergem do mesmo papel, como por encanto. Deste mesmo papel, deste mesmo meio, cada uma empunhando um lápis, um mesmo instrumento, uma mesma técnica, desenha a forma da outra. A emergência das mãos, sua centralidade na imagem e sua ação mutuamente determinante, fazem lembrar uma observação de Heidegger sobre as mãos:
[…] Só um ser que fala, quer dizer que pensa, pode ter uma mão e realizar em uma manipulação o trabalho da mão. […] Mas os gestos da mão transparecem na linguagem, e isto na maior pureza quando o homem fala em se calando. No entanto, é na medida que o homem fala que ele pensa e não o contrário, como a Metafísica ainda crê. Cada movimento da mão em cada uma de suas obras é conduzido pelo elemento do pensar, ele se comporta neste elemento. Toda obra da mão repousa no pensar. Por isto o pensar ele mesmo é o para o homem o mais simples, e no entanto o mais difícil trabalho da mão, quando vem o momento no qual ele deve ser expressamente realizado. (HEIDEGGER, Martin. Qu’appelle-t-on penser ?. Tr. Aloys Becker et Gérard Granel. Paris: PUF, 1959, pág. 90)