Em se tratando de auto-organização, poderíamos nos alongar ainda mais por esta trilha, de tipo organicista1. Mas como já a tangenciamos de alguma forma, ao falar da autopoiese de [[:node/784|Maturana e Varela]], trataremos de uma visão, de certa maneira associada a esta, a visão sistêmica. Sobre ela muito se poderia falar, mas isto, talvez seja matéria para um outro estudo. Em nosso caso, vamos abordá-la somente no que trata da divisão/relação sistema/meio, e, portanto, estaremos nos referenciando tão somente a um tipo de sistema, os sistemas abertos.
Tomando um de seus atuais expoentes, voltado ao sistemas sociais, Niklas Luhmann2, podemos reconhecer em seus trabalhos uma preocupação com esta divisão/relação, ao afirmar que: “o paradigma da teoria de sistemas recente é sistema e ambiente ”. Segundo ele, conceitos de função e análise funcional não mais se referem ao sistema, mas justamente ao recorte estabelecido entre sistema e meio, e ao relacionamento entre ambos. Este relacionamento com o meio é constitutivo na formação do sistema; não tem um significado acidental em comparação com a essência do sistema.
Para Luhmann, a clássica ontologia substância-essência não soube reconhecer o conceito de meio ou de ambiente. O século XVIII começou a repensar isto, em reflexões mais voltadas para o significado de milieu , visando a especificação de formas genuinamente indeterminadas, como os seres humanos. O resultado desta reflexão pode ser vista na própria mudança do conceito do termo milieu , originalmente o centro de um lugar.
Neste sentido é interessante notar, segundo Luhmann, que palavras compostas contendo o prefixo “auto” (self em inglês), proliferaram na Europa desde o século XVI; mas foi preciso uns duzentos anos para se perceber que isto pressupunha um meio, não apenas para suprir sua energia e informação, mas para assegurar a própria identidade do sistema, reconhecida pelo diferencial entre sistema e meio.
Luhmann afirma que tudo que acontece, ou seja qualquer evento, pertence a um sistema (ou vários) e sempre, ao mesmo tempo, ao meio deste e de outros sistemas. A diferença entre sistema e meio não é ontológica (não se corta a realidade em duas partes), ela é uma operação da observação que introduz a distinção.
Desta maneira, tudo que podemos, diretamente ou por intermédio de instrumentos, considerar como forma de realidade estável, manifestando características permitindo sua identificação e seu reconhecimento, tornadas possíveis, por sua vez, por uma diferenciação de um meio, com o qual ela entretém relações determinadas, se apresenta seja como sistema, seja como entrelaço de sistemas3.
A maneira como uma forma real é composta, sua ordem interna, sua estrutura, são tão importantes quanto os elementos dos quais ela é formada, e isto é válido para todos os níveis de complexidade, nos quais as unidades mais elementares vem se ordenar em seus conjuntos de nível mais elevado na hierarquia de graus de composição.
Dizer que estas diferentes formas de realidade existem segundo modalidades que lhes são próprias, quer dizer ao mesmo tempo e sobretudo, que elas coexistem em um mesmo mundo. O que não implica, de maneira alguma, que este mundo deva ser pensado como um sistema de todos os sistemas. Ou seja, o meio ou a ordem local de cada forma de realidade deve ser pensada sobre este fundo de coexistência das formas, não sendo este fundo, por sua vez, simplesmente redutível ao ajuntamento das partes de um sistema englobante, único e universal.
Para compreender melhor, usemos uma imagem dada por Jean-Marc Drouin em sua palestra na UFRJ, em 1997: o meio do cachorro é um; o meio da pulga é outro, e, em grande parte, é o próprio cachorro. Assim sendo, a existência de um sistema, em um meio dado, deve considerar sua inscrição em um contínuo, sobre o horizonte de coexistências diversas com outros sistemas, ao mesmo tempo que reconhece sua organização em articulação com seu meio imediato, com o qual mantém modalidades de interação e trocas específicas, maneiras de durar e de se espacializar.
Concluindo estas considerações sobre a visão organicista, e voltando ao princípio (à ideia de organismo vivo, interagindo com o meio), vale a pena introduzir o que o filósofo Hans Jonas4 nos informa sobre a própria noção de organismo. Uma observação que certamente nos vai ser de grande relevância, mais adiante, neste mesmo trabalho:
Esta similaridade entre os membros, quer dizer entre os órgãos motores externos e as ferramentas nos fornece a razão pela qual estes — e então por extensão todas as estruturas funcionais auxiliares do corpo, as estruturas internas assim como as externas, sensitivas e químicas não menos que as funções motoras — foram chamados “órgãos”, o que significa precisamente “ferramenta”: algo que realiza uma obra ou algo com o qual uma obra é realizada. Em sua célebre definição do ser vivo, Aristóteles definia diretamente o corpo vivo como “orgânico” (soma organikon), ou seja, como dotado de ferramentas ou composto de ferramentas; e ele tinha boas razões para denominar a mão humana de “ferramenta das ferramentas”, tanto porque é, por assim dizer, a ferramenta exemplar ela mesma, como porque por ela as ferramentas artificiais são feitas e empregadas como suas extensões. Portanto, se falando de “organismo” em conformidade com a significação original da palavra, falaríamos já de uma formação finalizada, pois o conceito de ferramenta não poderia ser pensado sem aquele de fim.5
DUPUY, Jean-Pierre & DUMOUCHEL, Paul (org.) (1983), L’auto-organisation, de la physique au politique. Paris, Seuil. ↩
LUHMANN, Niklas (1995), Social Systems. Stanford, Stanford University Press. ↩
TINLAND, Franck (ed.) (1991), Systèmes naturels, systèmes artificiels. Seyssel, Champ Vallon. ↩
JONAS, Hans (1995), Le principe responsabilité. Une éthique pour la civilisation technologique. Paris, Flammarion. ↩
Idem, p. 120. ↩