Se dirigindo à Kojima Takehico nos anos 1963-1965, Heidegger escreve: ‘pela presente carta, trata-se unicamente de reconhecer o seguinte fato: que é precisamente o olhar em direção da exploração, quer dizer em direção do próprio da tecnologização do mundo, que mostra um caminho em direção ao próprio do homem, que distingue sua humanidade no sentido da reivindicação que se faz disto através do Ser’.1
Na obra de Heidegger, o pensar sobre a questão da técnica abre sentidos e desígnios, cujo entendimento pressupõe um “ser capaz” para tal. Para sustentar a “questão da técnica” é preciso mais que um saber, para entender o que “é” a técnica, é preciso um ser capaz de manter esta questão viva. O desafio da questão não está apenas no entendimento da densa meditação encaminhada por Heidegger, da essência da técnica enquanto com-posição2 (Ge-stell) e metafísica da Modernidade, mas em “ser capaz” de enfrentar esta questão diante do próprio predomínio da técnica moderna em nossa vida.
Mas a pergunta nunca chega tarde e atrasada se nos sentirmos propriamente, como aqueles, cujas ações e omissões se acham por toda parte desafiadas e pro-vocadas, ora às claras ora às escondidas, pela técnica enquanto com-posição. E sobretudo nunca chega tarde e atrasada a questão se e de que modo nós nos empenhamos no processo em que a própria com-posição vige e vigora.3
Como diz um provérbio chinês, “uma longa jornada inicia-se com um primeiro passo”. Assim, o primeiro passo dado para compreender e responder a questão “o que é a técnica?”, será a investigação de sua natureza. Desta natureza cuja vigência4) se encontra velada pelo deslumbramento ordinário com seus propalados prodígios.
A questão sobre a essência da técnica deve orientar esta caminhada como um farol indicando o caminho seguro, porém a questão sobre sua natureza deve ocupar os passos iniciais. Natureza entendida no sentido do conjunto de condições originais latentes na técnica, emergentes na vigência das tecnologias dela decorrentes.
Esta observação coloca de imediato a importância de se entender a identidade e diferença entre técnica e tecnologia. Identificam-se dois termos afins e filiados um ao outro, que estranhamente intercambiaram suas noções desde o século XVIII. O termo tecnologia, que originalmente se referia ao “discurso da técnica”, veio indicar o instrumental ou o processo de aplicação deste instrumental em um “fazimento”, enquanto o termo técnica passou a se referir aos procedimentos de realização, no sentido de “tornar real”, e também ao discurso específico sobre estes procedimentos.
Neste último sentido, hoje em dia, usa-se muito o termo técnica, afinado com sua noção original de arte, de savoir-faire ou de “fazimento”. É justamente a técnica sob esta noção de fazimento, que Darcy Ribeiro5 cunhou para os fazeres indígenas, que norteia este pensar em direção à técnica mais moderna. Onde um fazimento original que era, ao mesmo tempo, desencobrimento, se distancia mais e mais do homem, como adverte Heidegger: “Sendo desencobrimento da dis-posição, a técnica moderna não se reduz a um mero fazer do homem”6.
Por outro lado, artefato, dispositivo, instrumento, ferramenta, utensílio são termos cada vez mais presentes no discurso contemporâneo, ganhando uma designação pomposa sob o termo único de tecnologia. Hoje em dia, em qualquer coisa designada por um deles, se reúne não apenas uma técnica, ou procedimento ou fazimento, mas uma coalescência de diferentes técnicas, representantes de diferentes fazimentos, em uma espécie de “discurso prático da técnica”, a tecnologia.
Esse amálgama entre as noções de técnica e de tecnologia é muito bem formulado por François Sigaut, ao apontar diferenças entre estes termos, no prefácio de um livro de ensaios do etnólogo André-Georges Haudricourt:
Se os dois termos podem ser tomados um pelo outro, é porque qualquer um dos dois não tem um sentido bem preciso para nossos contemporâneos. Porque, contrariamente a uma opinião bastante corrente, nossa vida quotidiana é cada vez menos marcada, menos formada e menos estruturada pela técnica. A técnica supõe o contato direto do homem com a natureza, com a matéria. Ora, as máquinas nos dispensam ou nos privam mais e mais deste contato, sem que o ensino geral (do qual as técnicas são excluídas) aporte qualquer compensação. O que cria esta ilusão, é que o capital de saber técnico acumulado em nossa sociedade é hoje em dia infinitamente maior do que jamais foi. Mas a parte de cada um de nós neste capital jamais foi tão desprezível.7
MILET, Jean-Philippe. L’Absolu Technique. Heidegger et la question de la technique. Paris: Editions Kimé, 2000, pág. 45; como esta, são minhas todas as traduções de livros que não tenham tradução conhecida em português. ↩
Opção feita pela tradução do Prof. Carneiro Leão, dos termos baseados no radical “stell”, em sua versão para o português do ensaio “A Questão da Técnica”, de Martin Heidegger (publicado no livro Ensaios e Conferências, editado pela Vozes). ↩
HEIDEGGER, Martin. Ensaios e Conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel e Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2002, pág. 27 ↩
É do verbo “we-sen”, viger, que provém o substantivo vigência. Wesen, essência, em sentido verbal de vigência, é o mesmo que “wahren”, durar e não apenas no sentido semântico, como também na formação fonológica. Já Sócrates e Platão pensaram a essência de uma coisa, como a vigência, no sentido de duração. (HEIDEGGER, Martin. Ensaios e Conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel e Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2002, pág. 33 ↩
RIBEIRO, Darci. “Apresentação”, in G. Bonsiepe, A Tecnologia da Tecnologia. São Paulo, Edgard Blucher, 1983 ↩
ibid., pág. 22 ↩
apud SERIS, Jean-Pierre. La Technique. Paris: PUF, 1994, pág. 4, grifo meu ↩