Excerto da Segunda Meditação, na tradução de Fausto Castilho
/2/ Arquimedes não pedia mais que um ponto, que fosse firme e imóvel, para poder remover a terra inteira de seu lugar: são grandes também as minhas esperanças, se vier a encontrar algo, o mais mínimo, que seja certo e inabalável.
/3/ Suponho, portanto, falsas todas as coisas que vejo: creio que nunca existiu nada do que a memória mendaz representa; não tenho nenhum dos sentidos todos; corpo, figura, extensão, movimento e lugar são quimeras. Que será, então, verdadeiro? Talvez isto somente: nada é certo.
/4/ Mas, de onde sei que não há algo diverso de todas as coisas cujo censo acabo de fazer e a respeito de que não haveria a mais mínima ocasião de duvidar? Não há algum Deus, qualquer que seja o nome com que o chame, que tenha posto em mim esses mesmos pensamentos? Por que, na verdade, supô-lo, quando talvez eu mesmo possa ser o seu autor? Não sou, portanto, eu pelo menos, algo? Mas já me neguei a posse de todos os sentidos e de todo corpo. Hesito, entretanto, pois, que resulta disso? Acaso estou atado assim ao corpo e aos sentidos que, sem eles, não posso ser? Mas já me persuadi de que não há no mundo totalmente nada, nenhum céu, nenhuma terra, nenhuma mente e nenhum corpo. Portanto, não me persuadi de que eu, também, não era? Ao contrário, eu certamente era, se me persuadi de algo ou se somente pensei algo1.
Mas há um enganador, não sei quem, sumamente poderoso, sumamente astucioso que, por indústria, sempre me engana. Não há dúvida, portanto, de que eu, eu sou, também, se me engana: que me engane o quanto possa, nunca poderá fazer, porém, que eu nada seja, enquanto eu pensar que sou algo. De sorte que, depois de ponderar e examinar cuidadosamente todas as coisas2, é preciso estabelecer, finalmente, que este enunciado eu, eu sou, eu, eu existo3 é necessariamente verdadeiro, todas as vezes que é por mim proferido ou concebido na mente.
/5/ Na verdade, ainda não entendo satisfatoriamente quem sou, esse eu [ego] que agora sou necessariamente. E, de agora em diante, devo precaver-me para não tomar imprudentemente outra coisa em meu lugar, errando, assim, também no conhecimento que pretendo seja o mais certo e o mais evidente de todos os que tive anteriormente4.
/6/ É por isso que, agora, meditarei de novo sobre aquilo que acreditava ser, outrora, antes de chegar a esses pensamentos. Em seguida, a partir disso, eliminarei tudo o que possa ter sido infirmado, por menos que seja, pelas razões alegadas, de maneira que só remanesça, por fim, precisamente, o certo e inconcusso.
Que acreditei ser, portanto, até agora? Um homem, decerto. Mas, que é um homem? Direi, acaso, um animal racional? Não, porque seria preciso perguntar em seguida que é um animal e que é racional, de modo que, a partir de uma questão, eu resvalaria para muitas e mais difíceis questões. E o tempo de que disponho já não é tanto que o queira malbaratar em sutilezas dessa ordem.
Mas, aqui, prestarei atenção de preferência aos pensamentos que até agora me ocorriam por si mesmos e naturalmente, cada vez que considerava o que eu era. Com efeito, ocorria-me, em primeiro lugar, que eu tinha um rosto, mãos, braços e toda essa máquina de membros, que se percebe também em um cadáver e que eu designava pelo nome de corpo. Além disso, ocorria que me alimentava, andava, sentia e pensava, ações que eu referia por certo a uma alma.
Mas, o que essa alma era, ou não o notava ou, se me detinha [si je m’y arrêtais] em considerá-lo, imaginava um não sei que de diminuto, a exemplo do vento ou do fogo ou de um éter [ou un éther], infuso em minhas partes mais espessas.
Sobre o corpo não tinha, na verdade, dúvida alguma e julgava conhecer-lhe a natureza distintamente. Se tentava talvez descrevê-la tal qual minha mente a concebia, explicava-o desta maneira: entendo por corpo tudo o que pode terminar por alguma figura, estar circunscrito em algum lugar e preencher um espaço do qual exclui todo outro corpo. É percebido pelo tato, pela vista, pelo ouvido, pelo gosto e pelo olfato e é, também, movido de muitos modos, não em verdade [à Ia vérité] por si mesmo, mas por um outro, que o toca e do qual recebe a impressão [et dont il reçoive l’impression]. Pois, ter a força de mover-se a si mesmo, de sentir e de pensar, de modo algum julgava pertencer à natureza do corpo. Ao contrário, ficava antes admirado de encontrar tais faculdades em certos corpos.
III Ora, eu, quem sou? [moi, qui suis-je], agora que suponho haver um enganador poderosíssimo e, se é permitido dizer, maligno, que de propósito empenhou-se, o quanto pôde, em me enganar em todas as coisas? Posso, acaso, afirmar que possuo minimamente todas as coisas que há pouco disse pertencer à natureza do corpo? Presto atenção, penso, repenso e nada ocorre, canso-me de repetir em vão as mesmas coisas.
Na verdade, quais delas eu atribuía à alma? Vejamos se algumas estão em mim [et voyons s’il y en a quelques-uns qui soient en moi]: alimentar-me e andar? Como já não tenho corpo, já não são mais que fícções. Sentir? Ora, isto também não ocorre sem corpo e muitas coisas pareceu-me sentir em sonho de que, em seguida, me dei conta que não sentira. Pensar? Encontrei: há o pensamento, e somente ele não pode ser separado de mim.
Eu, eu sou, eu, eu existo, isto é certo. Mas, por quanto tempo? Ora, enquanto penso, pois talvez pudesse ocorrer também que, se eu já não tivesse nenhum pensamento, deixasse totalmente de ser. Agora, não admito nada que não seja necessariamente verdadeiro: sou, portanto, precisamente, só coisa pensante, isto é, mente ou ânimo ou intelecto ou razão, vocábulos cuja significação eu antes ignorava. Sou, porém, uma coisa verdadeira e verdadeiramente existente. Mas, qual coisa? Já disse: coisa pensante.
E, que mais? Usarei minha imaginação para ver se não sou algo mais [pour voir si je ne suis point encore que chose de plus]. Não sou a compaginação destes membros, chamada de corpo humano; não sou também um ar sutil, infuso nestes membros; não sou um vento, nem um fogo, nem um vapor, nem um sopro, nem algo que eu possa formar em ficção, pois supus que tais coisas nada eram. Permanece, porém, a afirmação: eu mesmo sou, no entanto, algo.
/8/ Em verdade, talvez essas mesmas coisas que suponho não ser, porque me são desconhecidas, não difiram, porém, na verdade da coisa, do eu que conheci? Não sei, não discuto agora a respeito e só posso julgar acerca das coisas que me são conhecidas. Conheci que existo e procuro quem sou eu, esse eu que conheci. E é certíssimo que, assim precisamente tomado, o conhecimento de mim mesmo não depende das coisas cuja existência ainda não conheço, nem, portanto, daquelas que figuro em minha imaginação5.
E, essa palavra figuro chama a atenção para o meu erro: pois, estaria deveras figurando uma ficção, se deveras imaginasse que sou algo, porque imaginar não é senão contemplar a figura ou a imagem de uma coisa corporal. Mas, agora estou certo de que sou; mas, ao mesmo tempo, pode ser que todas essas imagens e, em geral, tudo o que se refere à natureza do corpo, não passem de um sonho. Feitas essas advertências, não pareço menos inepto ao dizer “usarei a imaginação para conhecer mais distintamente o que sou” do que dizendo “estou acordado e vejo algo verdadeiro, mas, como ainda não vejo com suficiente evidência, vou dormir de propósito, a fim de que os sonhos mo representem de modo mais verdadeiro e mais evidente”. De sorte que reconheço que nada do que posso compreender com a ajuda da imaginação pertence ao conhecimento que tenho de mim. E, para que a mente possa perceber distintamente sua própria natureza, é preciso muito cuidado em mantê-la afastada da imaginação.
/9/ Mas, que sou, então? Coisa pensante. Que é isto? A saber, coisa que duvida, que entende, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente. Não é certamente pouco, se essas coisas em conjunto me pertencem.
E, por que não pertenceriam? Não sou eu mesmo que, há pouco, pus em dúvida quase todas as coisas; que, no entanto, entendo algo; que afirmo que só isso é verdadeiro e nego as outras coisas; que desejo saber outras coisas, que não quero ser enganado, que imagino outras até involuntariamente e também que percebo outras como se elas proviessem dos sentidos? Qual dessas coisas não é tão verdadeira [20-22] [29] — mesmo que eu esteja sempre dormindo e que quem me criou faça tudo o que está em seu poder para me enganar — quanto é verdadeiro que sou? Qual delas distingue-se de meu pensamento? Qual pode dizer-se separada de mim mesmo? Pois que sou eu quem duvida, quem entende, quem quer; é tão manifesto que já não é preciso nada mais para tornar a explicação mais evidente.
Mas, em verdade, eu também sou o mesmo que imagina, pois, ainda que, segundo supus, nenhuma coisa imaginada seja verdadeira, a própria força de imaginar, todavia, existe deveras e faz parte de meu pensamento. Finalmente, eu sou o mesmo que sente e percebe coisas corporais, como, por intermédio dos sentidos, por exemplo, vejo agora a luz, ouço o ruído, sinto o calor. Essas aparências, dirão, são falsas6), já que durmo. Que assim seja [Qu’il soit ainsi]. Parece-me todavia [toutefois] que vejo, ouço, aqueço-me e isto não pode ser falso. Isto é o que em mim se chama propriamente sentir, o que, tomado assim, precisamente, nada mais é do que pensar.
A partir do que, começo sem dúvida a conhecer um pouco melhor quem sou.