Marías : Descartes

Julián Marías — O TEMA DO HOMEM

Com René Descartes (1596-1650) começa efetivamente a Idade Moderna. A primeira tentativa bem sucedida de pensar a realidade a partir dos novos pressupostos do homem moderno é a filosofia cartesiana. Daí seu despojamento originário, a estranha simplicidade que nos mostra, e também sua fecundidade incomparável. Descartes volta a abordar os problemas da filosofia de um modo imediato, vivo, surpreendentemente direto, com um mínimo de interposição de ideias recebidas, porque estas — inexoráveis na vida histórica do homem — aparecem nele rigorosamente repensadas. Talvez desde Aristóteles — e ainda mais, para uma dimensão da realidade, desde Santo Agostinho — o homem não se havia enfrentado de um modo tão radical e premente com as questões metafísicas. Quando se lê Descartes, sente-se muito pouco de uma construção ideológica; a impressão autêntica é a de estar-se junto às coisas mesmas, em toda sua pungente problematicidade.

Tem-se observado que há muito tempo — pelo menos desde o século XVIII — ninguém é nem pode ser cartesiano, ao passo que, dentro de certa medida, é possível ser aristotélico, tomista, kantiano, hegeliano ou positivista; e isto, longe de significar uma inferioridade do cartesianismo e justificarse pela falta de verdade que nele possa existir, é uma consequência de seu caráter mais próprio e profundo. Descartes, por iniciar efetivamente um novo modo de filosofar, não é capaz de fundar “escola”, mas só de remeter o homem às questões mesmas, obrigando-o a acometê-las, só e a corpo nu, em busca de evidências; isto é, na medida em que se é autenticamente cartesiano, em que se participa do espírito de Descartes, não se é seu discípulo escolar mas, simplesmente, um homem — outro homem — que procura a verdade. Por isto, aqueles que em seu tempo receberam a marca mais eficaz do pensamento de Descartes não foram “cartesianos” e sim, cada um, aquele que era: Malebranche, Bossuet, Fénelon ou Spinoza. Evidentemente, acontece o mesmo com todo filósofo autêntico, e é o único modo possível de ser filosoficamente aristotélico, tomista ou kantiano: a saber, não o sendo, mas de tal modo, que não se pudesse ser quem se é sem Aristóteles, São Tomás ou Kant. Se foi possível, com alguns filósofos, a constituição de discipulados mortos e passivos, responde por isso a existência nos mesmos de dimensões secundárias e externas que o provocaram — um prestígio opressivo, um sistematismo fechado e completo, o contraste com uma época de decadência, etc. —; de modo algum a índole própria de sua filosofia.

Descartes, no momento em que o homem ficou só, tenta construir a filosofia inteira apoiando-se na realidade humana; mais ainda, no eu pensante. A consequência deste ponto de partida foi o grande achado e o grande erro de três séculos que se chama idealismo. Isto determinará os caminhos pelos quais transcorrerá a antropologia desde o século XVII até quase nossos dias. A rigor, o homem fica • suplantado por algo seu, talvez o mais próprio, porém que não é todo ele; e por não o ser, ao tomar-se — pelo menos — a parte pelo todo, sua realidade fica alterada, e a filosofia não toma contato com o homem mesmo enquanto tal. Este ponto de vista, de modo algum, é falta de justificação e de fecundidade, mas contém um erro grave; sua correção será, por sua vez, a superação do idealismo e o acesso a uma nova filosofia, pela qual começa a navegar o homem de nosso tempo.

Importa, no entanto, proceder com extrema cautela. No momento de escapar do idealismo, convém tomar contato direto com o que ele é, em sua expressão mais clara e verdadeira. É o único modo de superá-lo efetivamente, depois de nele haver-se instalado e esgotado seu núcleo de verdade; ao penetrar no idealismo e chegar até seu ponto mais profundo, encontra-se, naturalmente, sua saída. Esta superação não se pode conseguir, de modo algum, com uma simples visão do lado de fora, porque nesse caso se fica “antes” dele, isto, fora de sua verdade, e a exigência inexorável desta se introduz sub-repticiamente na filosofia que a ignora, levando consigo sua dimensão errônea. Daí o “relativismo” e o “subjetivismo” que sempre ameaçam a filosofia quando se vê obrigada a incluir a realidade ineludível do eu, sobre pressupostos que pretenderam eliminá-la em sua autenticidade. Por isto interessa alcançar um conhecimento próximo e vivo do insubstituível pensamento cartesiano.

A bibliografia sobre Descartes é copiosíssima; assinalarei alguns dos livros capitais: O. Hamelin: Le système de Descartes (1911); J. Chevalier: Descartes (1921); A. Hoffmann: Descartes (tr. esp. 1932); E. Gilson: Index scolastico-cartésien (1913); Discours de Ia méthode (edição comentada, 1925); Études sur le rôle de la pensée médiévale dans la formation du système cartésien (1930); A. Koyré: Descartes und die Scholastik (1923); L’idée de Dieu chez Descartes (1922). Apresenta também interesse o antigo livro de Bordas-Demoulin: Le Cartésianisme (1843).