Jacques Ellul – A Técnica e o Desafio do Século

Nenhum fato social, humano, espiritual, tem, no mundo moderno, tanta importância quanto o fato técnico. Nenhum domínio, no entanto, é mais mal conhecido. Tentemos estabelecer alguns pontos de referência para saber onde se situa o fenômeno técnico.


Entre os caracteres essenciais do fenômeno técnico, há dois sobre os quais não insistiremos, pois são evidentes; são em geral os únicos salientados pelos “bons autores”.

O primeiro caráter evidente é o da racionalidade. Por qualquer aspecto que se considere a técnica, em qualquer domínio que seja aplicada, achamo-nos em presença de um processo racional. Tende a submeter ao mecanismo o que pertence à espontaneidade ou ao irracional. Essa racionalidade, que se observa particularmente bem nos fatos de racionalização, de divisão do trabalho, de criação de “standards” ou normas dc produção, implica na realidade dois movimentos: inicialmente a intervenção, em toda operação, de um “discurso”, nos dois aspectos que êsse têrmo pode apresentar (de um lado a intervenção de uma reflexão voluntária, de outro a intervenção de meios de um têrmo a outro). Isso exclui a espontaneidade e a criação pessoal. O outro aspecto desse movimento consiste em reduzir êsse discurso à sua exclusiva dimensão lógica. Toda intervenção técnica é, com efeito, uma redução ao esquema lógico, dos fatos, das pulsões, dos fenômenos, dos meios, dos instrumentos.

O segundo caráter é o da artificialidade. Técnica se opõe a natureza. Arte, artifício, artificial: a técnica como arte é criação de um sistema artificial. Não se trata de um julgamento. Simples verificação: os meios dos quais o homem dispõe em função da técnica são meios artificiais, motivo pelo qual a comparação proposta por Mounier entre a máquina e o corpo do homem não tem valor. Ora, o mundo constituído progressivamente pelo acúmulo dos meios técnicos comporta o mesmo caráter: é um mundo artificial, e portanto, radicalmente diferente do mundo natural. Destrói, elimina ou subordina êsse mundo natural, mas não lhe permite nem reconstituir-se nem entrar com ele em simbiose. Obedecem a imperativos e ordenamentos diferentes, a leis sem medida comum. Não é por acaso que a hidroeletricidade capta as cascatas, e as leva em condutos forçados: o meio técnico absorve assim do mesmo modo o meio natural. Caminhamos rapidamente para o ponto em que brevemente não mais teremos meio natural. Não nos esqueçamos de que a noite desaparecerá quando tiverem tido êxito as pesquisas destinadas a fabricar “auroras boreais” artificiais. Então, será dia ininterruptamente em todo o planeta.. .

Limito-me a essas indicações sumárias, dada a banalidade desses caracteres. Serei, ao contrário, obrigado a desenvolver mais longamente os seguintes: o automatismo, o autoacréscimo, a insecabilidade, o universalismo, a autonomia.