Daniel Andler, Anne Fagot-Largeault e Bertrand Saint-Sernin, Filosofia da Ciência”
A obra de Thomas Samuel Kuhn, A estrutura das revoluções científicas (2 ed. ampliada, 1970) , propõe a hipótese de que as comunidades científicas conhecem dois regimes evolutivos — o de ciência normal e o de crise.
Em período de “maturidade”, ou de ciência normal, todos os membros do grupo partilham o mesmo paradigma. Kuhn explicou-se sobre o sentido da palavra “paradigma” e sobre sua eventual substituibilidade por “teoria”, ou “matriz disciplinar” (ver o posfácio, § 2; e Kuhn, A tensão essencial, 12). Digamos que partilhar um paradigma é ter em comum uma literatura de referência especializada, uma maneira de ensinar a disciplina e critérios de validação dos conhecimentos. Em período de ciência normal, o trabalho científico é orientado para a resolução de enigmas: problemas em princípio solúveis, dados os elementos teóricos de que se dispõe, mas cuja resolução exige engenhosidade — donde o caráter hipertécnico, esotérico, eficaz do trabalho e um desenvolvimento cumulativo do saber.
Em período de crise, um paradigma é abalado — uma “anomalia” não absorvível foi identificada. Os membros do grupo divergem sobre as escolhas teóricas, formam-se escolas, há instabilidade das referências, e reorganização teórica quando um paradigma melhor se instala. O período crítico é uma fase de “revolução” durante a qual o homem de ciência deve “reaprender a ver o mundo” e habituar-se a novos critérios de validação — capítulo 9: Kuhn se inspira na Gestalt Theorie para dar conta da emergência do paradigma novo. Nesses períodos instáveis, as discussões entre escolas transformam-se em “diálogo de surdos”, os problemas significativos não são mais os mesmos para todos, os critérios de validação flutuam, há “incomensurabilidade” (cap. 11).
Imre Lakatos comenta com severidade essa análise, acusando Kuhn de deixar crer que a escolha de um paradigma novo é arbitrária, ou relativa a preferências culturais extra-cientificas. Lakatos é um aluno de Popper. Para Popper como para Kuhn, diz ele, o problema central da epistemologia é o das revoluções científicas, mas…
[su_quote]”Ao passo que, para Popper, as ciências são uma “revolução permanente”, e a critica o próprio núcleo do empreendimento científico, para Kuhn a revolução é excepcional e, para dizer a verdade, extra-científica, e a crítica, em tempo “normal”, anátema. […] Para Popper, na ciência a mudança é racional ou, pelo menos, pode ser racionalmente reconstruída e está ligada ao domínio da “lógica da pesquisa”. Para Kuhn, na ciência a mudança — de um “paradigma” para outro — é uma conversão mística que não é governada pelas leis da razão e nem pode sê-lo e que está inteiramente ligada à psicologia social da pesquisa.” (Imre Lakatos, 1970, tradução francesa em Histoire et méthodologie des sciences, 1994, p. 3)[/su_quote]
Kuhn explicou-se serenamente sobre suas concordâncias e discordâncias com as teses popperianas (A tensão essencial, 11). Ele pensa que Sir Karl está errado ao confundir os critérios de refutação de conjecturas formuladas no processo normal da pesquisa (esses critérios pressupõem um quadro teórico tido como sólido) e os critérios de escolha de um novo quadro teórico na sequência de um resultado experimental, do qual se julga que põe em dúvida os pressupostos sobre os quais se estava apoiado. Ele mantém que a preferência por tal ou qual reorganização teórica (“Gestalt switch”) é menos uma questão de “lógica” do que de psicologia coletiva dos pesquisadores.