Thuillier – Para livrar-se do dogma da imaculada concepção da ciência

Excertos de P. Thuillier, De Arquimedes a Einstein (Ed. A. Fayard, 1988, pp. XIX-XXII)

O que encontram os historiadores em geral e os historiadores das ciências em particular não é a Razão (universal e impessoal), mas homens que inventam e constroem certas formas de racionalidade. A própria “ciência” ocidental, por mais elevadas que sejam suas qualidades, não caiu do céu, foi elaborada passo a passo, bem lentamente, sem que se possa resumir seus processos por fórmulas simples. Nos manuais, é frequente que a “revolução científica” do início do século XVII seja apresentada como um súbito triunfo do intelecto humano; e, para precisar, alguns historiadores ressaltam que primeiro foi preciso uma “revolução filosófica”. O que parece exato, pelo menos se isto significa que era preciso haver uma nova concepção da natureza para inventar uma ciência nova. Porém, basta que filósofos tenham novas ideias? E por que foi preciso esperar o fim do Renascimento para que o célebre Método fosse concebido e eficientemente utilizado? E verdade, aliás, que a ciência efetiva tenha sido precedida pela definição de um novo método? E por que esses maravilhosos achados foram feitos na Europa? Os gregos e os árabes, entre outros, já haviam concebido noções e esquemas de tipo “científico”. Como se explica que um certo umbral, aparentemente decisivo, tenha sido transposto por volta de 1600? Qual “motor” sociocultural foi acionado? […]

Os historiadores desbravaram muito terreno, trouxeram à luz muitos documentos e propuseram muitas interpretações interessantes. Mas ocorre na história das ciências como nas próprias ciências: frequentemente, é delicadíssimo detectar e avaliar os “bons” fatos, os que foram importantes, até mesmo decisivos… A “revolução científica” foi, de certo modo, superdeterminada; a convergência de múltiplos fatores favoráveis, conforme a expressão consagrada, é que a tornou possível, e mesmo quase inevitável. Não quero dizer, com isso, que as menores especulações científicas (ou pré-científicas) daquela época sempre tiveram “causas” diretas absolutamente precisas e perfeitamente destacáveis. Mas que o movimento geral ao qual se assistiu no campo das atividades cognitivas pode ser entendido como a expressão de um conjunto de transformações socioculturais que diziam respeito às maneiras de produzir, de viver, de sentir e de pensar. Em outras palavras, faço livre uso desta hipótese emprestada daquilo a que chamam “sociologia do conhecimento”: cada sociedade gera um tipo de saber (ou tipos de saberes) em que se expressam (consciente ou inconscientemente) as estruturas, os valores e os projetos desta mesma sociedade. Cada sociedade, para empregar uma expressão simples porém cômoda, tem um estilo, e este estilo reflete-se em sua concepção de conhecimento. Inversamente, sempre dentro da mesma perspectiva, torna-se normal questionar-se sobre as bases sociais de todas as atividades cognitivas. E, por exemplo, perguntar-se de onde vêm os diversos pressupostos (filosóficos, metodológicos, semânticos etc.) que as estruturam e as tornaram possíveis. […]

As simplificações mais caricaturais certamente provêm dos historiadores que tentam descrever o nascimento da ciência recorrendo à história das ideias, à história das mentalidades e à antropologia cultural.

Elas devem, isto sim, ser procuradas entre os que querem, a qualquer preço, confirmar o dogma da Imaculada Concepção da Ciência. Eles é que tornam incompreensível a gênese dessa ciência dissimulando de maneira mais ou menos inocente (conforme o caso) todas as contribuições “externas” que foram necessárias a seu amadurecimento. Uma espécie de intelectualismo abstrato, ainda aí, provoca uma devastação; e isto, é preciso dizer, com o aval de certos historiadores idealistas. E de se pensar que os cientificistas têm vergonha de reconhecer certas filiações, certas heranças, como se fosse desonroso, por exemplo, ter dívidas para com os mecanicistas, engenheiros e artistas.