… Que é ciência? Esta é a pergunta que domina a Idade Moderna, e da resposta a essa pergunta depende o significado dessa Idade. Resumirei as respostas que têm sido dadas, um tanto sumariamente. Resposta renascentista: “Ciência é o decifrar do livro da natureza pelo intelecto”. Resposta barroca: “Ciência é a adequação do intelecto à coisa extensa pela nomenclatura, isto é, pelo afixar de algarismos a pontos”. Resposta do cristianismo: “Ciência é um discurso que consiste em juízos sintéticos a priori, isto é, em sentenças articuladoras de percepções realizadas”. Resposta romântica: “Ciência é um método discursivo pelo qual o intelecto se realiza, realizando destarte a sua circunstância, isto é, ciência é um método pelo qual o intelecto se objetiva”. Resposta vitoriana: “Ciência é um método da vontade pelo qual esta chega ao poder criando instrumentos”. Podemos observar uma tendência [167] nessa cadeia de respostas, e essa tendência reside na transferência paulatina do significado da ciência como disciplina de explicativa à manipuladora.

No início da Idade Moderna, ciência significa explicação de algo. É, portanto, uma sequência de sentenças verdadeiras. No fim da Idade Moderna ciência significa manipulação de algo. Ê, portanto, uma sequência de sentenças que são modelos de comportamento. De busca da verdade transforma-se a ciência, paulatinamente, em manual de técnica aplicada. Em suma: arte é melhor que verdade.

Façamos uma segunda pergunta. Que é filosofia? Mas não façamos essa pergunta in vacuo, senão em conjunto com a nossa primeira pergunta. Aí o significado da nossa pergunta passará a ser o seguinte: se a ciência for concebida como busca da verdade, a filosofia pode ser concebida como tendo dois significados: (a) é ela um discurso no qual as ciências individuais se originam; (b) é ela um discurso para o qual as ciências individuais voltam para nele depositarem as suas verdades. Essa dupla função será o significado da filosofia. Mas se a ciência for concebida como manual de técnica aplicada, que é filosofia diante dela? Será uma disciplina que nada tem em comum com ciência? Ou será uma disciplina que completa a ciência? Ou será uma disciplina que se opõe à ciência? Ou será finalmente um discurso superado pelo abandono da busca da verdade? Reformulando: se, como acontece agora em 1940, a ciência começa a ser concebida como um modelo do fazer, portanto [168] como magia, não estamos retornando para um estágio pré-filosófico do pensamento? Creio que é neste clima do eterno retorno que devemos localizar o ponto de partida wittgensteiniano.

As respostas fornecidas à pergunta “o que é ciência?” concordam, de uma maneira ou de outra, que ciência é uma disciplina discursiva. É algo que consiste em sentenças. Pois este dado fundamental não tem sido até agora devidamente considerado, e no curso do século XIX, com seu antropologismo, tem sido relegado inteiramente ao esquecimento. Considerem, por um instante, o que implica o fato de ser a ciência estruturalmente uma cadeia de sentenças. Implica a resolução da profunda dicotomia “empirismo/racionalismo” que tem problematizado a ciência desde o Renascimento.

E essa resolução implica, por sua vez, se levada totalmente a sério, a liquidação da ciência como método de pesquisa da “realidade”. E essa liquidação implica, automaticamente, a liquidação do pensamento moderno. Procuremos acompanhar essa liquidação em suas linhas mestras.

A ciência é uma cadeia de sentenças cujo significado último aparente é aquela “realidade” chamada “coisa extensa”. É como tal que a ciência foi projetada pelo Renascimento. Essas sentenças são verdadeiras se e quando espelhem situações (Sachverhalte) dessa realidade. Como podem espelhá-las? Porque são adequadas a essa realidade. A estrutura da ciência (que é a estrutura de sentenças) é a mesma que a [169] estrutura da realidade. Não fosse essa identidade de estruturas, não tivesse a realidade da coisa extensa a estrutura das sentenças da ciência, não poderia espelhar a ciência a “realidade”. Nesse caso seria a ciência uma cadeia de sentenças sem significado. Em outras palavras, e para recorrermos à cosmovisão renascentista: não fosse a natureza um livro escrito na língua científica, não poderia ser lida pela razão, e não fosse a razão um código linguístico da natureza, não teria a razão significado. Mas dada a feliz coincidência entre a estrutura da razão e a natureza, é a ciência um método para espelhar na razão a natureza. Mas essa feliz coincidência é justamente o problema a ser investigado.

O pensamento islâmico, fonte desse aspecto da cosmovisão moderna, não vê o problema. Para ele é óbvia a coincidência, já que tanto natureza como razão são articulações de Alá. A ciência espelha a natureza contra o fundo comum a ambas, que é o transcendente. Mas a Idade Moderna, que se decidiu para a ciência justamente a fim de virar as costas ao transcendente, recalca o problema. Vê-se, portanto, entre as pinças do dilema “empirismo-racionalismo”, que é a forma na qual o problema insiste em apresentar-se. A ciência consiste, obviamente, em dois tipos de sentenças. Há nela sentenças que contêm nomes próprios, que são nomes apontando para a “realidade”. Chamemos de “observacionais” essas sentenças.

E há outras que contêm apenas nomes de classes, que são nomes de nomes. Chamemos de “teóricas” [170] essas sentenças. O problema é este: como podemos justificar (isto é, tornar “válida”) a passagem do nível observacional para o nível teórico e vice-versa? Creio que mostrei no argumento precedente que as tentativas de justificar essa passagem, empreendidas pelo barroco, a que se chamam “indução”, fracassaram. Se adiro a uma ontologia nominalista como o deve fazer toda a Idade Moderna, isto é, se concedo “realidade” apenas ao significado dos nomes próprios, não posso justificar a passagem da observação para a teoria. Com Kant o problema é mascarado, porque é recalcada a estrutura linguística da “razão pura”. É verdade que para nós, graças às análises empreendidas por Wittgenstein e pelos neopositivistas, a máscara tornou-se transparente. Sabemos que as “formas de intuição espaço/ tempo” são máscaras da estrutura “substantivo” e “verbo”, e que as “categorias do conhecimento” são máscaras das regras gramaticais de uma determinada língua. Mas para Kant e para as épocas romântica e vitoriana as máscaras conseguiram velar o problema e evitar que entrave o progresso. Mas agora, com o recente desenvolvimento especialmente das ciências físicas, o problema deve ser encarado.

FLUSSER, V. O último juízo: gerações II – castigo e penitência. São Paulo: É Realizações Editora, 2017.

Vilém Flusser