Flusser (Pós-história) – Atual risco de uma ciência desumana

O conhecimento quantificado funciona tecnicamente. A Revolução Industrial o prova.

Mas tal conhecimento perde de vista o fenômeno vivo. A Revolução Industrial prova também isso.

O conhecimento não quantificado funciona tecnicamente mal, ou não funciona. As ditas [57] ciências do espírito” o provam. Daí as tentativas do século XX de amalgamar ciências duras com moles. Exemplos: economia estatística, psicologia behaviorista, politologia. Mas tais disciplinas híbridas não convencem nas técnicas que aplicam. O escândalo da medicina é disto prova. Aparentemente, a ciência está esbarrando contra um limite de conhecimento. Nessa direção não pode continuar avançando.

O homem enquanto sujeito coloca problema que é externo à ciência moderna. O encontro entre sujeitos é marcado pelo mútuo reconhecimento de um no outro. Tal relação dialógica de conhecimento é impossível de ser incorporada em não importa que teoria de conhecimento científico moderno. Toda teoria de conhecimento, se quiser ser científica no sentido moderno, pressupõe um objeto a ser conhecido, por mais que possa circunscrever tal objeto. De maneira que a ciência moderna é incompetente para encontros intersubjetivos.

Para tornar-se competente para tais encontros, é obrigada a transformar o “outro” em objeto.

Tal objetivação do sujeito é possível, e de fato é feita com frequência crescente. Vários métodos de objetivação são disponíveis; o da violência, o da persuasão, e o da manipulação sorrateira do sujeito. Feita a objetivação, a ciência passa a ser competente para encontros intersubjetivos, as “ciências sociais” são possíveis. Mas o preço pago por tal extensão da competência científica para incluir o homem e a sociedade é alto. O diálogo é sacrificado, e com ele é sacrificado o reconhecimento, em [58] prol do conhecimento. O resultado é a solidão do conhecimento: um conhecimento não reconhecido, nem reconhecível. Pois se o conhecimento não for reconhecido dialogicamente, se não for resultado de diálogo, e se não se dirigir rumo ao outro, passa a ser absurdo. Na medida em que a ciência vai objetivando homem e sociedade, o conhecimento que produz passa a ser absurdo. E isso problematiza a ciência como um todo, como empreendimento humano. A tendência atual da ciência rumo à objetivação do homem é tendência suicida. Transforma a ciência em aparelho desumano.

Pois a medicina é a disciplina preferencial para ilustrar ambos os problemas do conhecimento. Ilustra tanto os limites do conhecimento quantificável, quanto o absurdo fundamental de um conhecimento objetificante do homem.

O escândalo da medicina não é tanto a situação nos hospitais e manicômios, nem a injustiça flagrante da medicina social sobretudo no Terceiro Mundo, mas o escândalo é precisamente tal viscosidade epistemológica da medicina. Mas, precisamente, por destarte colidirem os fatores da crise científica mais claramente na medicina, pode ela representar um dos pontos, a partir dos quais uma superação da crise pode ser empreendida. A posição do médico face ao doente é de tal forma insustentável, que se vê obrigado a procurar por outra posição, por atitude científica nova. O médico se vê obrigado a mudar de atitude, não por considerações da teoria do conhecimento, mas pela problemática provinda [59] da sua práxis, a qual, por sua vez, é aplicação de teorias de conhecimento em crise. A crise da ciência moderna se manifesta, no médico, sob forma de conflito de consciência, e é pois interiorizada.

O engenheiro civil sabe, tanto quanto o cirurgião, da crise atual do conhecimento. Sabe que a exatidão, com a qual calcula a ponte, é problema. E sabe que a ponte terá efeitos sobre a situação que não são quantificáveis: efeitos estéticos por exemplo. Sabe ainda, que a ponte vai modificar a vida dos homens. Mas, enquanto funcionário do aparelho rodoviário, não se vê obrigado a assumir a responsabilidade por tais problemas. A sua competência é apenas a de construir pontes. O cirurgião está em posição diferente. A exatidão pela qual opera com o esqueleto é comparável com a da operação com o aço da ponte, os efeitos que a operação terá são igualmente incalculáveis, e a operação vai igualmente modificar uma vida humana. Mas o médico não pode safar-se da responsabilidade como o faz o engenheiro: queira ou não queira, o cirurgião se reconhece no operado.

O politólogo sabe, tanto quanto o psiquiatra, da crise atual do conhecimento. Sabe da inexatidão dos cenários que está projetando, e da “moleza” dos modelos que vai aplicando. E sabe que está manipulando e objetivando a sociedade. Mas enquanto funcionário do aparelho administrativo não se vê obrigado a assumir a responsabilidade por tais problemas. A sua responsabilidade se limita às “margens de erro” dos seus projetos. O psiquiatra [60] está em posição diferente. A inexatidão, a “moleza” dos modelos que está aplicando é comparável com a dos modelos politológicos, mas o psiquiatra se reconhece no doente ao qual está aplicando tais modelos. De modo que engenheiro civil e politólogo estão conscientes da problemática epistemológica, enquanto cirurgião e psiquiatra a vivendam na práxis. Devem decidir-se: ou abandonam a objetivação do homem e sacrificam técnicas científicas, ou abandonam as tentativas de assumir responsabilidade existencial pelo seu tratamento. Escolha impossível.

A solução da aporia está em mudança de atitude com respeito ao conhecimento. O conhecimento deve ser admitido como sendo uma entre as formas da existência humana. Forma inseparável das demais, sob pena de tornar-se desumana. O homem está no mundo ao vivenciá-lo, avaliá-lo, e conhecê-lo. Só pode conhecer o que vivência e avalia. Ciência que não admite isso, que não admite suas dimensões estéticas e políticas, é ciência desumana. Somente depois de ter assumido tais responsabilidades, pode a ciência começar a elaborar teorias do conhecimento. Com efeito: há sintomas de uma tal reformulação da atitude científica, e de teorias de conhecimento novas. Sobretudo na atitude fenomenológica, a qual não mais pressupõe que, conhecimento é necessariamente objetificante. Enquanto tal revolução científica não reformular a ciência moderna como um todo, a nossa saúde continuará sendo a das crianças sobreviventes subnutridas, e a dos fetos abortados.