Heidegger (GA87:274-276) – o método científico

Descartes fundamenta o método científico moderno na consideração do ente (do objeto) com as “regulae ad directionem ingenii”, “as regras para a direção do espírito” (invenção do espírito). Vamos recordar as primeiras 5 regras para conhecer qual a direção que toma a fundamentação da ciência moderna.

A primeira regra diz: “a finalidade do aprendizado científico tem de ser iluminar o espírito inventivo dos sentidos para que apresente juízos firmes e verdadeiros sobre tudo que encontra”.

O decisivo dessa regra consiste em nada se ter dito sobre o conteúdo do conhecimento científico, da divisão dos âmbitos, mas em se ter expresso apenas sobre o modo como tem de dar-se a presentificação daquilo que nos vem ao encontro. As expressões têm de ser: firme e verdadeiro – solida et vera – mas isso quer dizer (segundo as meditações) indubitavelmente certo.

A segunda regra: “é necessário e importante manter a reflexão apenas sobre aquele círculo de objetos para cujo conhecimento certo, isto é, indubitável, parecem ser suficientes as forças de nosso espírito”.

É nessa regra que encontramos uma das decisões fundamentais sobre a essência da ciência moderna e quiçá sobretudo da ciência que serve de padrão de medida para as demais, a física matemática. Essa tem uma precedência frente às ciências do espírito que se iniciaram só no século XIII porque seu âmbito de objeto é acessível a teste e cálculo, possibilitando o conhecimento indubitável requerido. Ainda se deverá abordar a relação das ciências da natureza com as ciências do espírito.

Na terceira regra determina-se por vez primeira a ciência moderna em sua essência:

“Dentro do âmbito dos objetos assim apresentados, porém, não se deve procurar e questionar pela opinião dos outros sobre isso ou sobre o que nós próprios (a partir de nós mesmos) supomos sobre as coisas, mas apenas aquilo que podemos intuir (intueri) de forma clara e evidente, ou que podemos deduzir (deducere) por via da derivação segura”.

A recusa de buscar pelos objetos seguindo apenas a opinião em vez de orientar-se por esses mesmos vai na contra-corrente da escolástica e de seu modo de fazer, que passa ao largo dos objetos. Nela perguntava-se pelas autoridades e comparavam-se as opiniões, mas não se agia a partir da coisa. O conhecimento surgia da harmonização das opiniões. Em vez disso, o intuitus, enquanto um ver imediato do que se dá de forma evidente, o que já não mais pode ser deduzido, e deductio, enquanto dedução de axiomas não passíveis de mais demonstração (exemplo privilegiado: a matemática) estão agora fundamentados sobre as coisas mesmas. O retorno a objetos supremos alberga em si a ideia da mathesis: deve ser possível retornar a princípios imediatamente evidentes, nos quais todas as consequências já estão inclusas.

A quarta regra é a decisiva:

“Para investigar a verdade das coisas se faz necessário um método precedente”.

Methodus, μέθοδος, isto é: estar no encalço de uma coisa, perseguir uma coisa por um caminho. Aqui está claramente expresso: Não se devem questionar opiniões doutrinárias prévias, mas o conhecimento deve surgir pela confiança nas coisas mesmas, na medida em que nos dirigimos a elas e as perseguimos.

A quinta regra:

“O conjunto total do método a ser seguindo (tota methodus) consiste na reta ordem sequencial e impostação daquilo em direção a que deve seguir o sentido de precisão a fim de que possamos encontrar alguma verdade. Mas nós mantemos essa ordem sequencial de maneira exata (rigorosa, exacte) quando, gradualmente, reconduzimos frases e princípios complexos (complicados em si) e obscuros em frases mais simples, e então procuramos nos elevar partindo dessa visão dos conhecimentos os mais simples para o conhecimento de todos os demais através da mesma escala”.

Nessa regra prepara-se a formação do caráter estritamente matemático da ciência. Kant, para quem a imagem de natureza newtoniana é determinante, diz mais ou menos o seguinte: “Cada conhecimento contém em si tanto de ciência quanto contém em si de matemática”.

Todavia, essa regra não serve para as ciências do espírito. Nelas o pensamento matemático é totalmente inútil. Como quereríamos, por exemplo, deduzir a história mundial de axiomas?! As ciências do espírito não são exatas em sentido matemático. Será que são menos exatas pelo fato de que, de acordo com sua natureza, seu método não pode ser o da matemática? Temos de distinguir entre exatidão e rigor de uma ciência. Toda ciência é rigorosa, significa: o modo de seu método é adequado à região de objetos e ao conteúdo objetivo. No modo como é experimentável, sabível e enunciável, a história é perfeitamente rigorosa. Mas só são exatas aquelas ciências cuja objetualidade admite um cálculo matemático. Querer exigir exatidão para as ciências do espírito é de certo modo a-científico. Isso porque o critério de um conhecimento exato na física matemática é que com ele a natureza pode ser calculada de antemão. História, porém, jamais poderá ser calculada e expressa de antemão. Spengler buscou fazer isso, vendo o universo histórico de forma puramente biológica. Mas nisso está implicada uma ignorância da essência da natureza e da história, visto serem distintos objetivamente e também segundo as possibilidades de sua objetificação.