Heidegger (SZ:206-208) – Idealismo

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução revisada de Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 275-277

Na investigação precedente, não se pode discutir amplamente a variedade de tentativas de solucionar o “problema da realidade”, formada pelas diferentes espécies de realismo e idealismo e de suas mediações. Por mais que, em todas essas espécies, se possa encontrar um germe de questionamento autêntico, seria absurdo pretender solucionar o problema somando tudo o que é correto em cada um. Ao contrário, é preciso que se compreenda fundamentalmente que as diversas direções epistemológicas não são deficientes quanto à epistemologia, mas que, devido ao descaso da analítica existencial da presença [Dasein], elas não podem absolutamente conquistar o solo para uma problemática segura de suas bases. Esse solo também não pode ser conquistado através de melhorias fenomenológicas posteriores dos conceitos de sujeito e consciência (Bewusstsein)1. Pois, com isso, não se pode ainda garantir que a colocação da questão se faça adequadamente.

Com a presença [Dasein] enquanto ser-no-mundo, o ente intramundano já sempre se descobriu. Esse enunciado ontológico-existencial parece concordar com a tese do realismo em que o mundo externo é real, ou seja, é algo simplesmente dado. Na medida em que, no enunciado existencial, não se nega o ser simplesmente dado dos entes intramundanos, ela concorda – por assim dizer doxograficamente – com a tese do realismo. Ela se diferencia, porém, em seus fundamentos de todo realismo porque o realismo toma a realidade do “mundo” como algo que necessita de prova e, ao mesmo tempo, como algo que pode ser comprovado. Em contrapartida, no enunciado existencial ambos são negados. O que a separa totalmente do realismo é a incompreensão ontológica de que sofre o realismo. Ele tenta esclarecer a realidade onticamente mediante o contexto efetivo e real entre as coisas reais.

Com relação ao realismo, o idealismo possui uma primazia fundamental, por mais oposto2 e insustentável que seja no que respeita aos resultados, desde que ele próprio não se compreenda equivocadamente como idealismo “psicológico”. Quando o idealismo acentua que ser e realidade apenas se dão “na consciência” (Bewusstsein), exprime, com isso, a compreensão de que o ser não deve ser esclarecido pelo ente. Como, porém, não se esclarece que aqui se dá uma compreensão de ser e o que diz ontologicamente essa compreensão, isto é, que ela pertence3 à constituição de ser da presença [Dasein] e como ela é possível, o idealismo constrói no vazio a interpretação da realidade. Que não se pode esclarecer o ser pelo ente e que a realidade só é possível numa compreensão ontológica, isso não dispensa um questionamento do ser da consciência (Bewusstsein), da própria res cogitans. Como consequência à tese idealista, a própria análise ontológica da consciência (Bewusstsein) é pressignada como uma tarefa preliminarmente inevitável. Somente porque o ser é “na consciência” (Bewusstsein), ou seja, é compreensível na presença [Dasein], a presença [Dasein] pode compreender caracteres ontológicos como independência, “em si”, realidade em geral, e conceituá-los. Apenas por isso o ente “independente” pode fazer-se acessível como algo intramundano, que vem ao encontro na circunvisão.

Se o título idealismo significar o mesmo que compreender a impossibilidade de se esclarecer4 o ser pelo ente, mas que, para todo ente, o ser já é o “transcendental”, então é no idealismo que reside a única possibilidade adequada de uma problemática filosófica. Nesse caso, Aristóteles não teria sido menos idealista do que Kant. Se, porém, idealismo significar a recondução de todo ente a um sujeito ou a uma consciência (Bewusstsein) que, por sua vez, se caracteriza como o que permanece indeterminado em seu ser, sendo, no máximo, caracterizado negativamente como uma “não coisa” então, do ponto de vista do método, esse idealismo se mostra tão ingênuo quanto o realismo mais grosseiro.


  1. CH: salto para dentro da presença [Dasein] 

  2. CH: a saber, à experiência ontológico-existencial 

  3. CH: a presença [Dasein], porém, (pertence) à essência do ser como tal 

  4. CH: diferença ontológica