Heidegger (SZ:§12) – facticidade

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução revisada de Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2006, §12

Como existencial, o “ser-junto” ao mundo nunca indica um simplesmente dar-se em conjunto de coisas que ocorrem. Não há nenhuma espécie de “justaposição” de um ente chamado “presença [Dasein]” a um outro ente chamado “mundo”. Por vezes, sem dúvida, costumamos exprimir com os recursos da língua o conjunto de dois entes simplesmente dados, dizendo: “a mesa está junto à porta”, “a cadeira ‘toca’ a parede”. Rigorosamente, nunca se poderá falar aqui de um “tocar”, não porque sempre se pode constatar, num exame preciso, um espaço entre a cadeira e a parede, mas porque, em princípio, a cadeira não pode tocar a parede mesmo que o espaço entre ambas fosse igual a zero. Para tanto, seria necessário pressupor que a parede viesse ao encontro “da” cadeira. Um ente só poderá tocar um outro ente simplesmente dado dentro do mundo se, por natureza, tiver o modo do ser-em, se, com sua presença [Dasein], já se lhe houver sido descoberto um mundo. Pois a partir do mundo o ente poderá, então, revelar-se no toque e, assim, tornar-se acessível em seu ser simplesmente dado. Dois entes que se dão simplesmente dentro do mundo e que, além disso, são em si mesmos destituídos de mundo, nunca podem “tocar”-se, nunca um deles pode “ser e estar junto ao” outro. Não pode faltar o acréscimo: “e, além disso, são em si mesmos destituídos de mundo”, porque também o ente que não é destituído de mundo, por exemplo, a própria presença [Dasein], se dá simplesmente “no” mundo ou, mais precisamente, também pode ser apreendido, com certa razão e dentro de certos limites, como algo simplesmente dado. Para isso, no entanto, é preciso que se desconsidere inteiramente, isto é, que não se veja a constituição existencial do ser-em. Mas não se deve confundir essa possibilidade de apreender a “presença [Dasein]” como um dado e somente como simples dado com um modo de “ser simplesmente dado”, próprio da presença [Dasein]. Pois este ser simplesmente dado não é acessível quando se desconsideram as estruturas específicas da presença [Dasein]. Ele só se torna acessível em sua compreensão prévia. A presença [Dasein] compreende o seu ser mais próprio no sentido de um certo “ser simplesmente dado factual”. Na verdade, a “factualidade” do fato da própria presença [Dasein] é, em seu ser, fundamentalmente diferente da ocorrência factual de uma espécie qualquer de pedras. Chamamos de facticidade o caráter de factualidade do fato da presença [Dasein] em que, como tal, cada presença [Dasein] sempre é. À luz da elaboração das constituições existenciais básicas da presença [Dasein], a estrutura complexa desta determinação ontológica só poderá ser apreendida em si mesma como problema. O conceito de facticidade abriga em si o ser-no-mundo de um ente “intramundano”, de maneira que este ente possa ser compreendido como algo que, em seu “destino”, está ligado ao dos entes que lhe vêm ao encontro dentro de seu próprio mundo.

De início, trata-se apenas de ver a diferença ontológica entre o ser-em, como existencial, e a “interioridade” recíproca dos entes simplesmente dados, como categoria. Ao delimitarmos dessa maneira o ser-em, a presença [Dasein] não se vê despojada de toda e qualquer espécie de “espacialidade”. Ao contrário, a presença [Dasein] tem seu próprio “ser no espaço”, o qual, no entanto, só é possível com base e fundamento no ser-no-mundo em geral. Não se pode, por conseguinte, esclarecer ontologicamente o ser-em mediante uma caracterização ôntica, dizendo: o ser-em um mundo é uma propriedade espiritual e a “espacialidade” do homem é uma qualidade de sua corporeidade (Leiblichkeit), fundada sempre num ser corpóreo (Körperlichkeit). Pois, com isso, se estaria novamente diante do ser simplesmente dado de uma coisa espiritual assim qualificada junto a uma coisa corpórea, permanecendo obscuro o ser como tal do ente assim composto. A compreensão de ser-no-mundo como estrutura essencial da presença [Dasein] é que possibilita a visão penetrante da espacialidade existencial da presença [Dasein]. É ela que impede a eliminação antecipada desta estrutura. Essa eliminação prévia não é motivada ontologicamente, mas “metafisicamente”, pela opinião ingênua de que primeiro o homem é uma coisa espiritual e que, só então, coloca-se “em” um espaço.

Com a facticidade, o ser-no-mundo da presença [Dasein] já se dispersou ou até mesmo se fragmentou em determinados modos de ser-em. Pode-se exemplificar a multiplicidade desses modos de ser-em através da seguinte enumeração: ter o que fazer com alguma coisa, produzir alguma coisa, tratar e cuidar de alguma coisa, aplicar alguma coisa, fazer desaparecer ou deixar perder-se alguma coisa, empreender, impor, pesquisar, interrogar, considerar, discutir, determinar… Estes modos de ser-em possuem o modo de ser da ocupação, que ainda será caracterizada mais profundamente. Modos de ocupação são também os modos deficientes de omitir, descuidar, renunciar, descansar, todos os modos de “ainda apenas”, no tocante às possibilidades da ocupação. O termo “ocupação” tem, de início, um significado pré-científico e pode designar: realizar alguma coisa, cumprir, “levar a cabo”. Mas a expressão ocupar-se de alguma coisa pode também significar “arranjar alguma coisa”. Ademais, usamos ainda a mesma expressão numa fórmula característica: preocupar-se com que uma empresa fracasse. “Preocupar-se” indica, neste caso, uma espécie de ter medo. Em oposição a estes significados pré-científicos e ônticos, a presente investigação usa a expressão “ocupar-se” para designar o ser de um possível ser-no-mundo. Esta escolha não foi feita porque a presença [Dasein] é, em primeiro lugar e em larga escala, “prática” e econômica, mas porque o ser da presença [Dasein] deve tornar-se visível em si mesmo como cura. Mais uma vez, deve-se tomar a expressão como um conceito ontológico de estrutura (cf cap. 6 desta seção). Esta expressão nada tem a ver com as “penas”, “tristezas” ou “preocupações” da vida as quais, do ponto de vista ôntico, podem ser encontradas em qualquer presença [Dasein]. Tudo isso, assim como a “jovialidade” e “despreocupação” só são onticamente possíveis porque, entendida ontologicamente, a presença [Dasein] é cura. Como ser-no-mundo pertence ontologicamente à presença [Dasein], o seu ser para com o mundo é, essencialmente, ocupação {CH: aqui ser-homem e presença [Dasein] se equivalem}.