François Dosse – Isabelle Stengers

Dosse, François O império do sentido: a humanização das ciências humanas. Tradução de Ilka Stern Cohen. São Paulo: Editora Unesp Digital, 2018

Em 2 de dezembro de 1993, data ironicamente bonapartista, Michel Serres entregava a Isabelle Stengers o grande prêmio de filosofia da academia francesa. Ele recompensava assim uma pesquisadora pouco acadêmica, que sempre se recusou a toda forma de encerramento num molde qualquer e que cultivava o gosto pela transversalidade e pelo nomadismo. Verdadeiro franco-atirador, denuncia sem descanso as tentativas de aprisionamento entre disciplinas científicas das quais cada uma procura adquirir uma posição hegemônica. Saqueando os canteiros floridos e pisando nos canteiros proibidos, é, segundo seu amigo Bruno Latour, uma “feiticeira […,] o aguilhão e o prego no sapato. Enquanto não se resolveu um problema com Isabelle, nada se resolveu em filosofia das ciências”. Apaixonada pelos riscos, ela se situa também na filiação das orientações de Michel Serres, realizando nos feitos as funções de Hermes, as da meditação e da tradução.

Química de formação, adquiriu uma sólida formação científica que faz dela uma filósofa “bem-centrada, que pode disseminar, divagar. Ela tem certeza de ter aceitação”. Essa formação inicial, que hoje ela considera mais como um saber cultural do que como uma competência científica, permite-lhe encontrar facilmente o caminho de um verdadeiro diálogo com os cientistas. Muito interessada em problemas de temporalidade, conheceu em primeiro lugar o modelo histórico por meio de seu pai, historiador de profissão: “Isso evidentemente contou muito para mim. Durante muito tempo, pensou-se, eu inclusive, que meu destino estava traçado, que eu seria historiadora como meu pai”. Mas era ignorar seu gosto pelo nomadismo, sua busca por novos pensamentos, seu interesse por novas práticas. Sua equação pessoal levava Isabelle Stengers a se desprender constantemente dos antigos modelos, à maneira de Nathanaël, herói do romance de André Gide, Les Nourritures terrestres.

Seu percurso, feito de rupturas, orienta-se para as ciências como forma de escape em comparação com um destino muito definido, e é também um meio de recuperar a contemporaneidade: “Eu tinha a impressão de que com história estaria sempre presa no passado e incapaz de compreender o instante, o presente e suas questões”. Ela escolhe a Química, que percebe como uma ciência de cruzamento, um campo de investigação ainda mal-definido e por isso um terreno de múltiplas possibilidades. Em seu curso de Química, descobre que as outras disciplinas científicas, notadamente a Física, consideram a disciplina caduca, em vias de desaparecimento enquanto tal. Essa apreensão da dimensão de conflito entre as ciências é absolutamente essencial em seu posicionamento mais tardio como filósofa e historiadora das ciências: ela compreenderá que há estratégias de conquistas e questões maiores, quase militares, com uma história das ciências povoada por perdedores e protagonistas reduzidos ao silêncio. O fato de pertencer a uma sociedade minoritária, que descobre “serva”, poderosa materialmente mas ideologicamente dominada, torna Isabelle Stengers particularmente sensível a essa dimensão. A Química é uma “ciência quase muda, sem voz, sem tradição a opor à Física ou à Biologia”. Daí manterá a noção essencial de minoria, que perpassa toda sua obra, e se dedicará, entre outras, à história dessa minoria, dando assim voz a uma ciência reduzida ao silêncio.

Stengers segue, portanto, um curso clássico de Química até seu mestrado em Bruxelas, onde terá Ilya Prigogine como professor. Sua divisão vem da insatisfação sentida no interior de uma formação muito estreitamente especializada, muito funcional. Pensa que, se existe um Kepler, ela não seria capaz de reconhecê-lo e seria até mesmo importunada por sua existência, que viria a perturbar os cânones de sua disciplina de origem: “Já era uma preocupação social no sentido de saber aquilo que envolve a reprodução de uma disciplina”. Isabelle Stengers decide assim prover-se dos meios acadêmicos para demarcar as frentes pioneiras, as verdadeiras inovações. Isso não se podia fazer senão numa situação de transversalidade.

No começo dos anos 1970, ela decide se matricular em filosofia para tornar-se filósofa das ciências. A primeira surpresa é do campo da linguagem. Ouve então, pela primeira vez, uma palavra que lhe parece bem estranha, “epistemologia”: “Foi a primeira palavra que não compreendi no meu primeiro curso de filosofia”. Sua atração por essa disciplina, completamente nova para ela, vinha simplesmente do fato de que se tratava do único lugar em que se podia refletir sobre as ciências sem fazer ciência. Termina seu curso de filosofia em 1973 e só se descobre realmente filósofa depois de sua formação acadêmica, quando começa a ler Gilles Deleuze: “É a grande época do L’Anti-Oedipe, mas para mim foi Différence et répétition que me fez trabalhar”. O que seduz Stengers na obra de Gilles Deleuze é sua capacidade de se engajar – e de envolver o leitor – numa busca de comunicação entre zonas que em geral são delimitadas: “Sua vida emocional e seu trabalho profissional”. É essa desobstrução que ela procurava justamente na relação entre as ciências e que descobre no campo da filosofia que lhe permite encontrar a si mesma: “Eu sou filósofa”.

Uma vez filósofa, Isabelle Stengers retoma seu caminho e reencontra seu antigo mestre Ilya Prigogine. Ele ainda não tinha o prêmio Nobel de química, que receberia em 1977. Ele acabava justamente de terminar suas pesquisas científicas sobre as estruturas dissipativas, e se colocava o problema da difusão de sua descoberta. A chegada de Stengers é uma oportunidade, pois ele precisa justamente dela, de sua formação de filósofa, para “pôr em palavras” as estruturas dissipativas. Assim, instala a discípula num escritório de seu laboratório, e começa uma verdadeira colaboração, que se traduz primeiramente por artigos em revistas especializadas, depois na escrita a quatro mãos de uma obra que terá grande repercussão, La Nouvelle alliance, publicada em 1979.

Isabelle Stengers, no entanto, não se deixa seduzir pelo sucesso que teria podido fazer dela uma especialista de um domínio particular da epistemologia, o da termodinâmica; decide explorar novos continentes do saber e prosseguir seu nomadismo. Vai trabalhar com amigos num departamento de sociologia, prosseguindo a preparação de sua tese, que defenderá em 1982, sobre a construção da visão do mundo dos físicos desde Galileu e Newton, a partir do problema que lhes coloca o fenômeno químico: “Eu tentei mostrar como as diferentes visões físicas do mundo se articulavam, sem dizê-lo, em torno de uma nova possibilidade de interpretar”. Ao mesmo tempo, ela participa de um trabalho inovador de sociologia, centrado na passagem da sociedade para a forma salarial, estudando os desdobramentos induzidos por essa mutação.

Em 1982, Stengers troca Bruxelas por Paris. Vai trabalhar quase quatro anos na preparação da Cidade das Ciências de La Villette, da qual guarda uma lembrança muito amarga, um “quase pesadelo”. Em compensação, encontra um lugar de trabalho e de prazer no qual se engaja com paixão, L’Autre Journal, de Michel Butel, que requisita sua colaboração: “O trabalho em L’Autre Journal é uma das boas lembranças de minha vida”. La Villette a faz amar retrospectivamente a Bélgica, que tem vontade de rever. A oportunidade de voltar surge quando Prigogine lhe propõe um período para escrever em comum uma segunda obra. Ao final desse trabalho, Isabelle Stengers é enfim contratada como professora titular na Universidade Livre de Bruxelas, na qual ensina ainda hoje. Mas uma nova aventura apresenta-se quando o psicanalista Léon Chertok lhe propõe trabalhar com ele sobre hipnose: “Eu não gosto de me interessar por um campo senão em companhia de alguém que pertença a ele”. Esse encontro é particularmente fecundo. Em breve daria origem a uma obra escrita com Chertok sobre a hipnose.

Esse trabalho está também na origem de uma coleção original e na ponta da reflexão sobre a inovação científica. Essa coleção é editada pela direção da comunicação dos laboratórios Delagrange (mais tarde Synthelabo, quando esse laboratório comprar o Delagrange), sob a responsabilidade de Philippe Pignarre. Ela tem um título deliberadamente provocador, Les empêcheurs de penser en rond, expressão retomada de Jean-Marc Lévy-Leblond. No início dessa coleção, Philippe Pignarre se interessa pelos pesquisadores cujo objeto é a ciência “em construção”. Em 1989, tendo ouvido Stengers apresentar seu livro sobre a hipnose no colóquio do Mans sobre “Ciência e filosofia”, ele lhe pede que faça uma conferência diante de trezentos psicanalistas convidados por Delagrange. O evento é um sucesso, e numerosos participantes manifestam o desejo de poder obter o texto da comunicação. Foi assim que nasceu a coleção, “sem que isso jamais tenha sido um projeto pensado, elaborado, mas simplesmente um achado”. Assim, seu primeiro volume é L’Hypnose, blessure narcissique, publicado em 1990. Esse tipo de edição-intervenção corresponde inteiramente à recusa ao academicismo por parte da agraciada com o prêmio de 1993 de filosofia da Academia Francesa. Ela encara de fato seus livros (é também o caso de Drogues. Le Défi hollandais, com Olivier Ralet) como “assunção de riscos”. Ora, para Isabelle Stengers, o risco tornou-se o critério maior de discriminação entre as verdadeiras e falsas ciências. Com a noção de risco como fator discriminador, utiliza um conceito completamente novo. O verdadeiro criador, segundo ela, inventa o risco, enquanto o falso criador se contenta em imitar as outras ciências.