4) A obra de Merleau-Ponty é, talvez, a tentativa mais radical de suprimir o problema do conhecimento. A teoria de Avenarius, que se propunha à mesma coisa, cai, se a consideramos de uma perspectiva mais ampla, na petitio principii, característica de todos os relativismos biológicos (inclusive o pragmatismo). Estes últimos partem de que as atividades chamadas “de conhecimento” podem ser totalmente entendidas como atos que restituem ao organismo sua homeostase, perturbada continuamente pelos estímulos do ambiente. Interpretam a verdade como valor vital, como qualidade atribuída aos conteúdos da experiência e julgam que a atribuição dessa qualidade (como de outras, como, por exemplo, a qualidade da experiência estética) se explica pelas circunstâncias em que o organismo deve coexistir com seu ambiente. Constituem, então, o lugar da atividade cognitiva apelando para as relações entre o comportamento do organismo e os conteúdos da experiência; mas afirmam que essas relações são verdadeiras, empregando, assim, o termo “verdadeiro” em seu sentido corrente e certamente não no biológico. Husserl descobriu esse círculo vicioso no relativismo biológico em suas Investigações Lógicas (Nietzsche já o havia feito antes dele). No entanto, a solução que ele propôs não é viável. Opinava que podemos — ou poderemos algum dia — alcançar uma consciência que será, com respeito a seus conteúdos, transparência ideal, e descrever esses conteúdos purificando-os dos hábitos do pensamento corrente (por exemplo, os hábitos implícitos nas estruturas da linguagem); acreditava também que, em algum momento, poderemos formular a pergunta referente à realidade (ou seja, a gênese) do âmbito objetivo, para o que devemos eliminar, nos dados que tomamos como ponto de partida, qualquer pressuposto sobre essa questão.
Essas duas capacidades são, no entanto, imaginárias. A primeira, por que a essência dos fenômenos não só deveria ser compreendida em um nível pré-linguístico, como também de um modo tal que estivéssemos seguros de que nosso patrimônio verbal e conceitual não influiu em sua configuração; mas isso pressupõe o regresso do investigador à ingenuidade do lactante, um regresso não só inverossímil como também indeterminável por princípio, mesmo que fossse realizável. A segunda suposição é apenas uma escapatória. A redução transcendental devia suspender originalmente apenas a pergunta sobre a gênese ou sobre a fonte dos fenômenos reduzidos (o mundo em si ou o ego empírico); de fato, impediu qualquer regresso, porquanto não existe nenhum caminho imaginável que permita voltar da análise do conteúdo neutralizado a sua des-neutralização. É impossível explicar a origem dos dados da consciência por suas qualidades, pois antes seria preciso conhecer outras conexões genéticas semelhantes para tomá-las como paradigma e alcançar, pelo caminho da analogia, a compreensão de que os conteúdos estão condicionados pela presença da coisa ou pela presença do sujeito psicológico. Em outras palavras: as condições fundamentais da gênese dos dados deveriam estar pressupostas no resultado da demonstração, mas isso é impossível se temos que partir de dados neutros.
A renúncia à redução transcendental nas meditações dos filósofos da existência (Heidegger, Sartre e Merleau-Ponty) deveu-se a que eles observaram que a redução era irreversível, e sua provisoriedade ilusória. A renúncia à redução foi apenas a outra face do reconhecimento da intencionalidade da consciência. O fato de que o objeto estivesse dado junto com a consciência retirou validade à pergunta cartesiana. Mas não por isso a realidade percebida teve de ser considerada, como antes, como o campo fixo e acabado de uma exterioridade assimilada; o mundo percebido não podia estar livre da referência a situações, nem se podia voltar a conceder à consciência a condição de uma coisa colorida pelas espécies dos objetos: era uma parte da situação. Portanto, a união do dado com o intencional foi julgada indestrutível.