Publicado originalmente sob o título: “Le statut de la science dans la dynamique de la compréhension”, em Recherches et Débats, n. 75 (publicado sob o título geral: Chemins de la Raison), Desclée de Brouwer.
Mais próximo de nós, encontramos um outro projeto filosófico, comparável ao de Descartes e remontando à mesma inspiração, sob a forma da filosofia de Edmundo Husserl e da fenomenologia transcendental.
A inspiração cartesiana vê-se aqui novamente aceita, de modo explícito e confessado, pelo menos no que concerne a dois pontos fundamentais: um, a ideia de uma filosofia entendida como uma ciência rigorosa que deva realmente tornar possível um saber unificado; o outro, a volta à evidência do cogito como instrumento essencial da crítica filosófica.
Não obstante, deparamos aqui com uma modificação considerável da teoria de Descartes. Primeiro, no que concerne à ciência, não encontramos mais a situação simples de uma ciência que seja inteiramente, do começo ao fim, a ciência do espaço. A matemática ampliou-se: a geometria agora é apenas um campo muito estreito da matemática. A matemática tornou-se uma matemática puramente formal. E se Husserl de novo formula a ideia de uma mathesis universalis, é num sentido muito mais geral do que Descartes: o sentido de uma ciência geral de sistemas formais.
Mas, além disso, a experiência histórica mostrou que nem toda ciência pode ser construída segundo o modelo da física matemática e integrada num sistema formal. Consequentemente, nem toda ciência pode ser matemática (no sentido da matemática moderna). De fato, o que caracteriza as ciências formais é o fato de que elas se abstraem do indivíduo e de tudo que pertença ao indivíduo enquanto tal. Elas retêm apenas a ideia geral de um indivíduo possível. Os símbolos que representam o indivíduo estão aí simplesmente como índices de indivíduos e mais nada. Eles representam os indivíduos, não no sentido de uma descrição, mas no sentido de um papel. O que realmente importa é a relação. Mas como a relação inclui seus termos, é necessário representar esses termos de uma ou de outra maneira. Isso explica o papel das variáveis, que é puramente funcional. É verdade que as teorias matemáticas lidam com o domínio dos indivíduos e os caracterizam de um ponto de vista cardinal; mas aí é novamente possível voltar a submeter essa determinação a uma análise em termos de relações, visto que é possível definir um número cardinal como a classe de todas as classes que são equivalentes sob uma relação biunívoca e recíproca.
Mas em certos casos não podemos fazer abstração do indivíduo, tendo, ao contrário, que tentar apreender o que é próprio a tal ou qual indivíduo, não ao indivíduo em geral, ao indivíduo enquanto indivíduo, mas a um indivíduo aqui e agora. É o ponto de vista do apax eiremenon. Aristóteles dizia que não há nenhuma ciência do singular. Mas atualmente estamos desenvolvendo ciências do singular. De fato, tais ciências são ciências apenas na medida em que e porque atingimos o singular sob uma modalidade da generalidade, muito embora a generalidade em questão não seja uma generalidade formal. Talvez pudéssemos usar aqui a distinção husserliana entre o a priori material e o a priori formal. A ciência só existe na medida em que vamos de alguma maneira além do puramente empírico, do fato bruto, do mero singular. Se vamos além do fato bruto, necessariamente atingimos algo que tem valor independentemente do fato em sua contingência, embora presente no fato e dado a nós tão somente no fato. Eis aí o que se chama de a priori, não no sentido kantiano, mas no sentido husserliano. Mas esse a priori pode ser um a priori material ou formal. Vale dizer que podemos abandonar uma maior ou menor porção do conteúdo empírico. Podemos abstrair do que é peculiar a tal ou qual caso e conservar apenas o que é comum a diferentes casos, tentando, não obstante, reter o que constitui o conteúdo comum de todos esses diferentes casos. Chegamos então a algo que é uma essência. Em princípio, basta ver um único caso para ser capaz de atingir a essência que esse caso encerra. Mas, na prática, precisamos de vários casos e do método da variação livre, como é chamado por Husserl.
Podemos, então, ir adiante e deixar de considerar qual é o conteúdo de tal e tal categoria de fenômenos. Podemos nos elevar ao nível das formas fundamentais, as essências materiais sobretudo. Podemos ir, de uma maneira radical, além de tudo aquilo que pertence ao concreto, à hyle. Neste momento atingimos o a priori formal.
A ciência é sempre o conhecimento do a priori, mas ela pode sê-lo no sentido do a priori material ou do a priori formal. Em outras palavras, há um grupo de ciências que estuda o conteúdo e um grupo de ciências que estuda a forma. Temos assim as ciências das essências e as ciências das formas puras. Como exemplos do primeiro tipo, podemos citar a história, a psicologia, pelo menos a psicologia ou a psicanálise fenomenológica, e também a sociologia fenomenológica. O que importa nessas ciências é a apreensão de certas essências concretas. Por exemplo, a apreensão de uma civilização como uma totalidade, que se atinge quando se consegue deslindar o princípio de unidade dessa civilização, o núcleo central em tomo do qual ela está organizada. Por outro lado, nas ciências formais, consideramos em sua plena generalidade as propriedades que pertencem ao objeto pela única razão de ser um objeto, ou, em outros termos, as propriedades das puras objectidades e das operações que se podem executar sobre essas puras objectidades.
Como conclusão, temos que admitir que a ideia da ciência não pode ser restringida à ideia da mathesis universalis. Não obstante, permanece a distinção e mesmo a oposição entre ciência e filosofia, e o problema dessa distinção, bem como correlativamente, o problema da unidade do ato de conhecer, como condição de um autêntico conhecimento, colocam-se de maneira mais aguda.
Na perspectiva husserliana, porém, deparamos com uma outra modificação mais essencial ainda com relação à perspectiva de Descartes. A tese de Husserl é que Descartes havia visto corretamente que a redução ao cogito constituía o tema condutor central da filosofia — pelo menos de uma filosofia que tem que se desenvolver no contexto cultural criado pelo aparecimento e nascimento das ciências positivas. Mas a Descartes escapou a verdadeira natureza do cogito. Disse Descartes: “Penso, logo sou uma substância pensante”. Quando diz: “Penso”, ele efetivamente atinge o cogito, ou mais exatamente o ego cogito, e por conseguinte o ego do cogito, como o último e radical fundamento de toda evidência. Mas quando diz: “Sou uma substância pensante”, ele falsifica a essência do cogito porquanto faz do cogito uma substância, vale dizer, um existente intramundano, e no momento em que isso acontece o fundamento está perdido para ele.
O esforço filosófico que é preciso empreender na direção da inspiração dada por Descartes deve ter por objetivo radicalizar a expressão filosófica do cogito, deslindar a natureza real do ego, a fim de se atingir uma autêntica instância fundadora sem pressupor justamente aquilo que precisa ser estabelecido. Examinemos agora mais de perto a maneira pela qual o enfoque de Husserl afeta a relação entre a ciência e a filosofia. Encontramos em Husserl, bem como em Descartes, a ideia de que não há nenhuma ciência sem uma concepção explícita daquilo que constitui a ciência enquanto ciência, daquilo que lhe dá validez e dela faz um autêntico conhecimento. Realmente, temos que nos ocupar aqui não somente com a metodologia, mas com a própria natureza da ciência enquanto tal. Todo saber real é um saber crítico, quer dizer, consciente de si mesmo, de seus projetos, de seu significado, de seu alcance, de seus limites, de suas possibilidades. Portanto, ele é ao mesmo tempo um saber do conteúdo e um saber do saber. Para Husserl, esse saber do saber é a lógica no antigo sentido clássico dos gregos, a ciência do “logos”, a ciência da razão! |que se constrói a si mesma. A lógica é uma doutrina da ciência. Diz Husserl: “A lógica é a auto-explicitação da razão pura ela própria, ou, para falar idealmente, a ciência na qual a razão teórica pura chega a uma perfeita consciência de si mesma e se objetiva de uma maneira perfeita num sistema de princípios”. [Formale und transzendentale Logik, p. 27.]
Sem dúvida, é verdade que, sendo a auto-explicitação da razão pura, a lógica é ela própria uma obra da razão pura e se desenvolve em conformidade com princípios racionais puros, que são conscientes de si mesmos. “A, auto-explicitação da razão pura”, observa novamente Husserl, “é ela própria uma manifestação racional pura, e depende precisamente de princípios que encontram sua explicitação nessa manifestação racional”. [Ibid., p. 27]
Mas a lógica tem sido desenvolvida como uma lógica formal apenas e, ultimamente, como a teoria dos sistemas formais. Isso acarreta duas limitações muito sérias. Primeiro, a lógica enquanto pura apofântica analítica voltou-se unicamente para a perspectiva da objetividade, omitindo inteiramente o lado subjetivo, a investigação da subjetividade que faz a ciência. A ciência não é apenas um conjunto de resultados. Ela é também uma ação e, por conseguinte, implica uma razão operante que nela se manifesta. Consequentemente, propor uma doutrina da ciência não pode consistir simplesmente em descrever os quadros a priori nos quais se desenvolve toda ciência possível. Mas consiste e tem que consistir em compreender o funcionamento interno da razão que faz a ciência.
Por outro lado, a lógica formal só é uma forma geral de organização racional no caso das ciências formais — a matemática e todos os ramos da ciência que podem ser formulados matematicamente, tal como a economia pura. Mas é também preciso ter em mente as ciências do outro tipo, as que se poderiam chamar de materiais, uma vez que elas visam, em virtude de sua própria natureza, a compreensão de essências concretas.
Se quisermos realizar em toda sua plenitude a ideia da lógica, vale dizer, a ideia de uma fundamentação crítica e radical da ciência e a própria ideia da ciência, temos que ir além da lógica formal. Temos até mesmo que ir além da lógica formal compreendida como a ciência universal dos sistemas formais em geral. Temos que recorrer a uma lógica que se volte para a subjetividade, uma lógica que Husserl chama de transcendental. A própria lógica formal necessita d© um fundamento, e esse fundamento só a lógica transcendental pode lhe dar. Por outro lado, se nos voltarmos para a subjetividade, nela encontraremos também o meio de dar um fundamento para as ciências não-formais. Mas como será isso possível? Que subjetividade é essa?
Notemos que não podemos nos satisfazer com uma justificação a posteriori. Uma verdadeira justificação, uma verdadeira doutrina da ciência, deve ter um caráter a priori vale dizer, deve ser capaz de estabelecer em toda sua generalidade e sobre bases de princípio a validade da ciência. Portanto, se falamos em subjetividade, não podemos nos satisfazer com o sujeito empírico que de fato constrói dia a dia a ciência. Ou bem temos que renunciar ao nosso esforço, ou bem temos que realmente encontrar um fundamento que seja absoluto.
Ora, podemos descobrir a direção de semelhante fundamento absoluto refletindo sobre as condições da evidência. A ciência visa a evidência, ela visa aquilo que se mostra em total clareza como algo que se impõe a si mesmo de modo absoluto e apodíctico. Certamente, nem toda proposição científica tem a mesma evidência. É até mesmo verdade que, em geral, sua qualidade de evidência é apenas derivada. E a construção de sistemas teóricos tem precisamente por objetivo reduzir evidências menos certas a outras mais certas. Todavia, ao analisarmos as proposições científicas, vemos que, afinal de contas, permanecemos sempre, através de sua construção sintáctica, numa relação última com o solo fundamental e absoluto da evidência, a coisa mesma. Temos aí a experiência de uma perfeita correspondência entre a coisa que visamos e o que de fato obtemos, ou ainda de uma perfeita e adequada superposição da noesis, o ato que nos pertence, e do noema, o conteúdo que atingimos através de nossos atos de consciência.
Mas falar em evidência é necessariamente falar em evidência para alguém. Mais exatamente, nossa evidência é sempre uma evidência para nós. E se devemos descrever o movimento do conhecimento como se referindo finalmente a um sistema hierárquico de evidências, deixaremos por isso mesmo implícito um polo ao qual esse sistema de evidências se relaciona e tem que se relacionar, um polo que é o ponto de apoio último das evidências. Esse polo é o correlato transcendental de todos os conteúdos da experiência, é o Ego puro, ou o Ego transcendental. Esse ego não é um ego mundano, não é um pedaço do mundo, uma vez que é para ele somente que há um mundo, e é a ele que o mundo aparece, num sistema hierarquizado de evidências. É ao ego em particular que se dá esse tipo fundamental de evidência — o dado da coisa mesma. A coisa em questão é um “dado a”. A quê? Ao ego. Mas encontramos aqui um último ato de dar, posto que nos encontramos no nível mais fundamental da evidência, que é a base de todos os outros. Deparamos, portanto, com um dar absoluto, o que significa que esse dar não é efetuado no interior de um campo que já esteja aí, pois neste caso teríamos que explicar como esse campo é ele próprio dado. Na verdade, atingimos o ponto onde se instaura aquilo graças a que semelhante campo pode existir. É a própria possibilidade de se dar e, consequentemente, a possibilidade da evidência e, portanto, da ciência que fica assim estabelecida. Esse ponto, esse solo fundamental, esse lugar (topos) onde se instauram não somente certas evidências particulares, mas a evidência enquanto evidência, vale dizer a possibilidade geral e a priori da evidência enquanto tal, é a vida transcendental do Ego puro. Mais uma vez, esse Ego puro não é ele próprio parte do mundo em outras palavras, não é o ego empírico. Não pode ser o ego empírico, porque neste caso ele se pressuporia a si mesmo. É uma espécie de ponto puro. Ele é a condição última e suprema da experiência enquanto tal e da possibilidade da experiência em geral. Ele é um polo ou um correlato absoluto, o lugar (topos) de toda gênese de sentido, o médium através do qual aparece a verdade. Ele é um fundamento e um fundamento absoluto.
É nesse sentido que ele é chamado por Husserl um ego constitutivo. Seu constituir não é de modo algum uma criação. Sua gênese não é de modo algum um gerar; é uma gênese passiva. Isso significa que assistimos aqui o nascimento simultâneo do ego e do mundo ou, mais exatamente, que assistimos aqui ao nascimento da experiência como tal.
Essa experiência diversifica-se então. Nossa experiência não é uma experiência unitária, ela apresenta níveis, articulações, uma organização interna. E podemos tentar compreender esses diferentes campos da experiência vendo como cada qual se instaura na vida transcendental do ego. Tal é o objeto da descrição da vida do ego transcendental, o objeto da fenomenologia transcendental, que Husserl também chama de idealismo absoluto. Esse termo de Husserl dá origem a muita confusão e é ilusório, porque a descrição de que falamos é na mesma medida uma realismo absoluto.
O conceito-chave aqui é o de intencionalidade. O termo “intencionalidade” designa a relação do Ego com seus correlatos, uma relação transcendental na qual a experiência se desdobra. A intencionalidade é, portanto, uma intencionalidade constitutiva, exatamente no mesmo sentido em que o Ego pode ser chamado de Ego constitutivo. A diversificação dos diferentes campos de experiência é então tornada explícita através da diversificação dos diferentes tipos de intencionalidade. O desdobramento de cada tipo de intencionalidade constitui um certo campo de experiência. E assim se verá que há uma intencionalidade característica da ciência em geral e que, no interior dessa intencionalidade geral, descobriremos uma diversificação interna levando à diferenciação das várias ciências. Assim haverá uma intencionalidade constitutiva da física, ou da psicologia, e assim por diante. Evidentemente, só poderemos conhecer essas diferentes intencionalidades a partir de seus produtos. Mas, na medida em que nos elevamos em direção ao Ego transcendental, estamos indo além de uma simples generalização empírica para atingir um autêntico a priori que é de fato o a priori último. O Ego transcendental é o campo puro do a priori e as diferentes intencionalidades representam por assim dizer as estruturações internas desse campo. Enquanto tais, elas constituem, em sua unidade articulada, as várias características a priori dos vários domínios particulares da experiência.
Dessa maneira, compreendemos que possa haver um fundamento real para a ciência, não somente das ciências formais, ou da lógica entendida como a doutrina suprema do formal enquanto tal, mas de todo tipo de ciência. Cada ciência é um estudo de um certo domínio da experiência, de uma região do ser, de uma “região ontológica”, e não somente de uma “região ôntica”, pois em cada ciência temos a ver não somente com uma coleção particular de dados empíricos, mas com aquilo através do qual esses dados são dados. A vida, por exemplo, é mais do que a soma de todos os seres vivos. Ela é algo mais, ela é o campo geral no qual todo ser vivo pode nos ser dado. Toda ciência é, na realidade, uma descrição de um campo ontológico, mas ela própria não explica esse campo. Ela se instala aí originalmente de maneira ingênua. É preciso mostrar como esse campo é constituído, e podemos fazê-lo mostrando precisamente a que tipo de intencionalidade ele corresponde, como ele se instaura na vida transcendental, no desdobramento de uma intencionalidade característica. Mostrar isso é, ao mesmo tempo, lançar o fundamento da ciência em geral. Vemos assim como e em que sentido a fenomenologia transcendental pode trazer a chave para a fundamentação da ciência, de que maneira ela constitui o fundamento tanto das ciências particulares quanto da ciência em geral.
E assim retornamos à realização da perspectiva cartesiana, mas com as modificações decisivas que indicamos. De fato, mantém-se de uma maneira muito clara a distinção entre a ciência e a filosofia, mas uma certa forma de1 unidade é restabelecida, porque de agora em diante a filosofia aparece como trazendo a chave para a fundamentação da ciência. Essa fundamentação da ciência é realizada através de uma volta à subjetividade transcendental. Por um lado, há uma distinção real: a ciência é a descrição de ontologias regionais, enquanto a filosofia é a fundamentação dessas ontologias ou, o que dá no mesmo, a ciência da subjetividade transcendental. Enquanto tal, a filosofia é realmente ciência, no sentido de um saber rigoroso, crítico e sistemático. E isso corresponde à ideia husserliana da filosofia como ciência de rigor. Por outro lado, a oposição entre ciência e filosofia é ultrapassada. Há agora uma relação intrínseca entre as duas, uma relação de “fundamentação”. E, deste modo, é reconstituída uma certa unidade do saber. Não há mais justaposição, mas uma articulação interna, logo um sistema e, por conseguinte, um saber. Já era esta, de fato, a perspectiva de Descartes.
Vemos agora o que a obra de Husserl significa no contexto cultural contemporâneo. Somos testemunhas do triunfo evidente das ciências positivas, da expansão praticamente indefinida de seus métodos, de seus resultados, de sua fecundidade. Mas esse próprio desenvolvimento representa um sério perigo tanto para a ciência quanto para a filosofia: para a ciência, porque ela corre o risco de tornar-se uma pura técnica, de perder a consciência de sua própria natureza e o controle de seus próprios princípios condutores. Para a filosofia, porque a atitude científica ameaça obliterar completamente a atitude filosófica e destruir todo interesse vivo pelo saber filosófico. Portanto, se quisermos permanecer fiéis ao ideal clássico da razão, que se encontra presente na própria ciência, temos que dar uma grande atenção ao seguinte: é preciso vencer esse duplo perigo trazendo a ciência de volta aos seus próprios princípios justificando alcance do projeto filosófico. Mas de onde surge esse perigo? Do fato de1 que a ciência é o conhecimento de um mundo que já está dado, que já é evidente. Do fato de que a ciência se estabeleceu numa atitude ingênua em face do mundo e não coloca coisa alguma em questão. Para superar esse perigo — a necessidade de fazê-lo não é de modo algum artificial, pois temos que superá-lo se quisermos realizar a ideia mesma que está presente na própria ciência — é preciso superar essa ingenuidade. Para fazê-lo é preciso antes de mais nada entendê-lo, é preciso saber como e por que ele surge. Isso nos remete de volta à questão mais fundamental: como é constituída a evidência? Tais questões obrigam-nos a entrar na esfera da reflexão transcendental, quer dizer, a descobrir a presença, no âmago mesmo da experiência em geral e da experiência científica em particular, do Ego transcendental enquanto subjetividade fundadora.
Deste modo, a ciência e a filosofia vêm-se salvas ao mesmo tempo e, com elas, a ideia da razão em sua plenitude. A ciência permanece, contudo, necessária, porque essa filosofia do Ego, afinal de contas, é apenas uma espécie de filosofia puramente formal. Ela nos ensina tudo acerca da constituição do mundo (no sentido ativo), mas nada acerca do conteúdo do mundo. Ela é, em seu aspecto técnico, até mesmo necessária, porque suas aplicações tornam possível a realização efetiva do reino da razão prática. De tal maneira que as próprias técnicas científicas são da mais alta importância para a realização do destino da razão. Mas esta, naturalmente, é uma outra questão. No que concerne diretamente ao nosso problema, vemos finalmente que o resultado do desenvolvimento da ciência moderna pode ser descrito da seguinte maneira: a filosofia é justificada como sendo a fundamentação da ciência e se torna filosofia transcendental e, enquanto tal, filosofia formal, ciência das formas transcendentais da experiência; e a ciência positiva torna-se, em contrapartida, ciência do conteúdo.