Michel Henry (Carne:§ 2) – Os “princípios da fenomenologia”

Incarnation. Une philosophie de la chair. Michel Henry. Seuil, 2000

§ 2. A indeterminação inicial das pressuposições fenomenológicas da fenomenologia. Os “princípios da fenomenologia”.

Como toda pesquisa, a fenomenologia implica pressuposições. Mas as pressuposições próprias à fenomenologia apresentam um traço distintivo. Na pesquisa ordinária, as pressuposições que comandam o raciocínio são escolhidos pelo pensamento e, como tais, podem ser modificados. É assim que o matemático dispõe livremente os axiomas de onde decorrem as séries de implicações que compõem a teoria. No curso de seu trabalho, adiciona, suprime, modifica certas proposições destinadas a enriquecer ou a enfraquecer o sistema axiomático, de tal maneira que a dependência da teoria a respeito do pensamento se manifeste constantemente. Nas outras ciências, como as ciências empíricas, as pressuposições são constituídas por um conjunto de propriedades pertencendo a certos fatos e considerados como característicos destes últimos. Pergunta-se por exemplo por qual razão um fenômeno pode ser dito jurídico, sociológico, histórico

O próprio das pressuposições da fenomenologia é que elas são fenomenológicas, e isto em um sentido radical: trata-se do aparecer do qual acabamos de falar, da fenomenalidade pura. É ela que deve guiar a análise dos fenômenos no sentido da fenomenologia, quer dizer consideradas na maneira que se dão a nós, no “Como” de seu aparecer. Enquanto este permanece incompreendido ou não questionado aquilo que lhe confere o poder de aparecer, os pressupostos fenomenológicos sobre os quais repousa a fenomenologia permanecem fenomenologicamente indeterminados. Esta indeterminação fenomenológica das pressuposições da fenomenologia espalha-se sobre o conjunto da pesquisa que dela deriva, a ponto de torná-la incerta e enganosa.

Como analisar o fenômeno histórico o mais banal – ou o mais decisivo – se o modo de aparecer da temporalidade, que determina a priori o modo de aparecer de todo fenômeno histórico em lhe conferindo sua “historicidade”, não foi interrogado em si-mesmo. Como compreender a vinda do Verbo neste mundo e assim sua aparição nele se o modo de aparecer do mundo não foi reconhecido previamente e descrito com todo rigor? E como saber se esta vinda ao mundo é uma vinda em um corpo, como pensam os gregos, ou em uma carne, como diz João? Como se o modo de manifestação próprio a um corpo e aquele próprio a uma carne não foram objeto de uma elucidação sistemática, capaz de remontar àquilo que, na manifestação de um corpo, faz dela uma manifestação – à matéria fenomenológica desta manifestação -, de maneira que possamos saber, por um saber absolutamente certo, se a matéria fenomenológica da manifestação de um corpo é a matéria do corpo ela mesma (o limo da terra), ou não? E, pondo a mesma questão a respeito da carne, saber se a revelação da carne é diferente da carne ela mesma? Ou se, ao contrário, a revelação da carne lhe é idêntica como sua própria substância, como sua própria carne, como a carne de sua carne? Neste caso, manifestação do corpo e revelação da carne difeririam totalmente, pertencendo a duas ordens heterogêneas e irredutíveis do aparecer. Não conviria igualmente pôr a questão da fenomenalidade da revelação que realiza-se no Verbo ele mesmo. Se é a revelação de Deus, se, por outro lado, tomou uma carne semelhante à nossa, não estaríamos então acuados, em nossa própria carne, a Deus ele mesmo? Revelação de Deus em seu Verbo, revelação do Verbo em sua carne, estas epifanias apresentadas na Arque-inteligibilidade joânica não se mostrariam solidárias ou, por assim dizer de maneira mais radical, não tomariam carne em nós da mesma maneira?

Limitemo-nos por instante à constatação da indeterminação das pressuposições fenomenológicas da fenomenologia histórica. Esta se deixa reconhecer nos “princípios” que esta fenomenologia se deu a si mesma. Reteremos três: o primeiro princípio, adotado por Husserl à escola de Marbourg, se enuncia assim: “Na mesma proporção aparência, na mesma proporção ser”. Desde já, estamos em condição de reconhecer o caráter equívoco desta proposição em razão da dupla significação possível do termo aparência. Ou bem entende-se por aparência o conteúdo que aparece, ou bem sua aparição enquanto tal: o aparecer ele mesmo. Na lógica de nossas análises anteriores, formularemos o princípio de maneira a escapar a toda ambiguidade e diremos: “Na mesma proporção aparência, na mesma proporção ser”. Este princípio é importante porque estabelece uma correlação entre dois conceitos fundamentais, cuja filosofia assim como o senso comum fazem uso constante. Aos olhos do senso comum, é verdade, a correlação se lê indo do segundo ao primeiro: do ser ao aparecer. É porque as coisas inicialmente são, que elas podem me aparecer. Se saio para comprar cigarros na tabacaria da rua vizinha, perceberei a loja ao final de meu trajeto, entrarei para aí fazer minha compra. Vai sem dizer que a tabacaria, os cigarros e os charutos, a rua, existiam antes de minhas compras. Mas em que consistia esta existência prévia do mundo? Poderia abster-se de um aparecer primordial do qual nenhum homem, nenhum animal, nenhum Deus não teria jamais o menor contato com ele – com o mundo?

A fenomenologia está inicialmente atenta ao poder desta correlação, e é a razão pela qual ela vai lê-la em outro sentido. Que alguma coisa – qualquer que seja – me apareça, de pronto ela acha sendo. Aparecer, é, por aí mesmo, ser. Que se trate de uma simples imagem que atravessa meu espírito, de um significado vazio de uma palavra (da palavra cão na ausência de todo cão real), de uma pura alucinação, enquanto dela me mantenha na efetiva aparição, naquilo que aparece tal qual aparece, não posso me enganar. A aparição de uma imagem – que alguma coisa lhe corresponda ou não na realidade – é absolutamente certa. Só que esta certeza, a aparição da imagem a tem não do conteúdo particular desta imagem mas do fato que ela aparece. Do aparecer depende por conseguinte toda existência, todo ser possível. É na medida que o aparecer aparece e por esta razão que o ser “é”, é porque o aparecer desdobra seu reino que o ser desdobra o seu, de sorte que parecem ter apenas um só e mesmo reino, uma só e mesma essência. “Na mesma proporção aparência, na mesma proporção ser.” Ora, apesar desta identidade suposta de sua essência, aparecer e ser não se mantém de modo algum sobre o mesmo plano; sua dignidade, se assim se pode dizer, não é a mesma: o aparecer é tudo, o ser não é nada. Ou melhor o ser somente é porque o aparecer aparece e tanto quanto o faz. A identidade do aparecer e do ser se resume nisso que o primeiro funda o segundo. Identidade de essência quer bem dizer aqui que há somente em ação um único e mesmo poder, mas este poder é aquele do aparecer. Independentemente deste último, enquanto não aparece, o ser não é nada – pelo menos não é nada para nós. Sua essência – aquilo que lhe permite ser -, o ser a toma somente no aparecer, que previamente lhe desdobrou sua própria essência, a essência do aparecer que reside na sua aparição efetiva, no seu auto-aparecer.

Se nos interrogamos anteriormente sobre o princípio da fenomenologia, estamos agora em condições de discernir mais claramente sua importância e seu limite. Sua importância é de ter posto a fenomenologia diante da ontologia, subordinando a segunda à primeira. E isso não com o propósito de desqualificar a ontologia, e particularmente a ontologia tradicional, mas ao contrário de lhe designar um fundamento garantido. Aquilo que é, o do qual se diz que é, escapa com efeito a toda contestação do momento que nos aparece de maneira incontestável. E só a interrogação portando sobre o aparecer e sobre suas maneiras de aparecer pode decidir, conforme este aparecer é ele mesmo incontestável ou não, se isto que nele aparece, de tal e tal maneira, escapa por sua vez, ou não, à dúvida.

Ora o primeiro princípio não permite de jeito nenhum responder a esta interrogação. Sua imensa fragilidade, é precisamente sua indeterminação fenomenológica fundamental. É nomear o aparecer sem dizer em que consiste, como aparece, sem remontar à instância que, nele, lhe permite aparecer, sem reconhecer a matéria fenomenológica pura da qual todo aparecer deve ser feito na medida que se diz que ele aparece, nele mesmo e inicialmente – sem dizer a natureza da claridade ou do brilho de sua luz, se trata-se de “luz”, ou se trata-se de qualquer outra coisa.

Enquanto, todavia, o aparecer permanece nele mesmo indeterminado, a determinação por ele do ser resta ela mesma indeterminada. Pode-se pensar, além do mais, que esta indeterminação nos deixa em presença de uma simples afirmação da qual nada permite saber isto que a torna legitima.

A fenomenologia queria substituir uma ontologia especulativa, cuja construção consistia principalmente em um jogo de conceitos, por uma ontologia fenomenológica, onde cada tese repousaria ao contrário sobre um dado incontestável, sobre um fenômeno verdadeiro. Um fenômeno “reduzido”, como dizem ainda os fenomenólogos, quer dizer excluindo dele tudo isto que não seria dado em uma visão clara e distinta, “em pessoa”, “em carne e osso” – segundo uma presença plena na qual tudo seria mostrado, sem recato nem reserva. Ma como saber se o aparecer responde a uma tal descrição enquanto, nos limitando a designá-lo do exterior em lugar de perscrutar sua substância incandescente, só dispomos ainda de um conceito formal a seu respeito? Ao conceito formal do aparecer corresponde um conceito formal do ser. O conceito formal do ser não permite saber nem aquilo que é o ser – a potência do ser -, nem aquilo que é – o ente -, nem a natureza de sua diferença, se diferença há. Não permite saber se uma tal diferença tem uma significação ontológica geral ou se ela só concerne ao contrário um domínio do ser, pois ela será dependente de um modo de aparecer particular, desprovido de toda pretensão a universalidade.

As mesmas notas concerniriam isso que denominamos convencionalmente o segundo princípio da fenomenologia, princípio tão importante por bem dizer que se propôs como sua palavra de ordem: “Zu den Sachen selbst!” (“Direto às coisas mesmas!” ). As “coisas mesmas” são os fenômenos reduzidos a seu conteúdo fenomenológico efetivo, aquilo que aparece portanto, tal qual aparece. Ir direto às coisas mesmas, tomadas neste sentido, é considerar este dado imediato na sua imediação, desembaraçado das interpretações e dos saberes sucessivos que arriscam de o recobrir, de se interpor entre ele e nós. Todavia, segundo aquilo que foi dito do objeto verdadeiro da fenomenologia, pode-se pensar que a “coisa mesmo” da fenomenologia, aquilo da qual ela tem a tratar, não é inicialmente o conteúdo do fenômeno, mas de preferência aquilo que faz deste conteúdo um fenômeno: sua fenomenalidade pura, o aparecer. Se nos perguntamos então, a respeito deste último, o que nos permite ir direto a ele, que via conduz ao aparecer enquanto tal, então não há outra resposta que esta: o aparecer ele mesmo! É o aparecer puro enquanto aparece, de si mesmo, por si mesmo e em si mesmo, que, no seu auto-aparecer, nos tomando pela mão de alguma maneira, nos conduz até ele, com efeito.

Implicações muito fortes estão aqui em jogo. Analisando os constituintes gregos da palavra fenomenologia, distinguimos de entrada seu objeto – o fenômeno – e seu método – o Logos: o saber que convinha pôr em ação para apreender corretamente um tal objeto. A palavra de ordem da fenomenologia nos repõe diante desta distinção: “die Sache selbst”, “a coisa mesma”, quer dizer o objeto verdadeiro da fenomenologia por um lado, por outro o zu, o caminho que conduz até ela. Somente, se é o aparecer ele mesmo, enquanto ele aparece dele mesmo e nele mesmo, no seu auto-aparecer, que nos conduz até ele, isto não significa que é a coisa mesma da fenomenologia que abre a via em direção dela mesma, que unifica objeto e método da fenomenologia? Não que eles possam ser postos sobre o mesmo plano, mas neste sentido muito preciso que é o objeto que constitui o método. Como a claridade que rompe a noite, é sua própria luz que a faz ver. Esta reabsorção do método fenomenológico em seu objeto não implica por sua vez sua eliminação pura e simples? Não o torna para tudo bem inútil? Que necessidade de um método para ir ao aparecer e o conhecer, se é o aparecer que vem em direção a nós e se faz conhecer dele mesmo?

É verdade que a objeção vai ao encontro de nossas concepções habituais. Temos a ideia de um conhecimento diferente daquilo que ela tem a conhecer e assim sempre separado do objeto do qual ela se esforça de apreender a natureza. Ela tem necessidade desde então de um certo número de procedimentos, de metodologia, que ela inventa para este fim e que são procedimentos e metodologias do pensamento. Na fenomenologia, o método é um procedimento de elucidação que visa conduzir progressivamente em plena luz, diante do olhar do pensamento, na “clareza da evidência”, aquilo de algum jeito será conhecido de maneira segura. Este método é aliás implicitamente aquele de todo saber se esforçando em produzir um conhecimento “científico”, quer dizer fundado. Fundado sobre a evidência na ocorrência e “racional” a este título. Quando se trata do conhecimento de um arquétipo inteligível da intuição intelectual de um objeto ideal – objeto geométrico, matemático, significação da linguagem, relação lógica… -, o prévio de um poder de conhecimento ou de intuição não é ainda e sempre exigido como condição de um acesso a este inteligível? E isto não vale também para o sensível? Todo conhecimento, mas mais fundamentalmente toda forma de experiência não remetem necessariamente ao a priori de um poder de conhecimento, a esta condição a priori de toda experiência possível da qual Kant fez tema da filosofia?

Que dizer então de um Inteligível escapando a toda condição prévia – cujo acesso, o inteligível não estaria submisso ao pensamento, não surgiria ao termo de um processo de elucidação -, que dispensaria todo processo deste gênero, mas o precederia inexoravelmente? Uma meta, se assim se quer, mas à qual nenhum caminho conduziria jamais – uma meta semelhante àquela da qual fala Kafka quando diz: “Há uma meta mas nenhum caminho. Aquilo que chamamos caminho, é a “hesitação”? Uma meta para qual nenhum caminho conduzirá porque será ele o caminho, a Via, o prévio? Uma Inteligibilidade portanto posta no início e a condição de toda outra inteligibilidade concebível? Uma Arque-inteligibilidade, ainda incompreendida, análoga talvez àquela da qual fala João?

A esta questões, nos é impossível responder neste momento. Se fazemos retorno à fenomenologia histórica, compreendemos porque. Precisamente porque ela deixou indeterminadas as pressuposições fenomenológicas sobre as quais ela repousa. Porque o aparecer em direção ao qual convergem tais pressuposições não foi objeto de uma elucidação levada até o final. Do que necessita, é de um desnudar daquilo que, no aparecer, chamamos sua matéria fenomenológica pura ou ainda sua carne incandescente, aquilo que nele brilha ou incandesce. Ou todavia esta matéria incandescente não se presta a nenhum “desnudar”, a nenhuma “evidência” – ao “ver” de nenhum pensamento?