Michel Henry (Carne:§1) – Objeto da fenomenologia, a questão do “aparecer”.

Incarnation. Une philosophie de la chair. Michel Henry. Seuil, 2000

O título “fenomeno-logia” se entende a partir de seus dois constituintes gregos — phainomenon e Logos — de sorte que, tomados literalmente, a palavra designa um saber concernente ao fenômeno, uma ciência deste. Refletindo sobre esta definição muito simples, pode-se adiantar que o primeiro termo, o fenômeno, qualifica o objeto desta ciência, enquanto o segundo, o Logos, indica o modo de tratamento que convém aplicar a este objeto, o método a seguir para adquirir um conhecimento adequado. Objeto e método da fenomenologia, eis aquilo é aventado no título mesmo que ela se dá.

Tudo isso sendo dito em grego, algumas precisões se impõem. No famoso § 7 de Sein und Zeit (Max Niemeyer, 1941, p. 28) Heidegger no-los oferece. Derivado do verbo phainesthai, que significa se mostrar, o fenômeno designa “aquilo que se mostra, o se mostrando, o manifesto” (“das was sich zeigt, das Sichzeigende, das Offenbare”). Ora esta passagem de aparência anódina do verbo ao substantivo opera uma substituição decisiva embora oculta. Só sua consideração nos põe face ao verdadeiro objeto da fenomenologia. Este não é precisamente o fenômeno, aquilo que aparece (“das was sich zeigt”), mas o ato de aparecer (phainesthai). Este é o objeto próprio da fenomenologia que a diferencia imediatamente de todas as outras ciências. Essas ocupam-se com efeito dos múltiplos fenômenos considerados cada vez segundo seu conteúdo específico, enquanto fenômenos químicos, biológicos, históricos, jurídicos… fenômenos aos quais correspondem ciências apropriadas: química, biologia, história… A fenomenologia ao contrário se dá por tarefa o estudo daquilo que estas diversas ciências não tomam jamais explicitamente em consideração: não tanto o conteúdo particular destes diversos fenômenos, mas sua essência, aquilo que faz de cada um deles um fenômeno: o aparecer no qual eles se mostram a nós — este aparecer enquanto tal.

Certamente, o fenômeno, por um lado seu conteúdo, por outro o fato que ele aparece, vão em conjunto e parecem ser apenas um. Razão pela qual o pensamento ordinário ou científico não se preocupa em dissociá-los A taça posada sobre a mesa se mostra a mim. O que não impede: nem a mesa nem a taça não têm elas mesmas a capacidade de se aportarem em sua condição de “fenômenos” — de sorte que, no seio mesmo do fenômeno, por um lado seu conteúdo, por outro o fato que aparece, diferem no princípio.

Foi Husserl que introduziu esta distinção essencial sobre a qual vai repousar a fenomenologia. Estudando o fluxo dos vividos de consciência que se escoam temporalmente em nós, ele os considera não como simples objetos, mas como “objetos no Como”1. “Objetos no Como” quer dizer: objetos considerados não mais em seu conteúdo particular mas na maneira segundo a qual eles se dão a nós e nos aparecem — no “Como” de sua doação.

A análise que forma o contexto da proposição de Husserl nos ajuda a compreendê-la. Na audição de uma sinfonia musical, um som ou uma fase sonora deste som se dão a mim como uma fase esperada — e logo futura — ou como fase presente, ou ainda como uma fase passada. A bem dizer, a mesma fase sonora se dá sucessivamente a mim dessas três maneiras, como a vir, como presente e como passada. De sorte que, a distinção introduzida por Husserl, entre o conteúdo que permanece idêntico (a mesma nota lá de um violão) e seus modos de aparecer que se modificam enquanto ele se escoa temporalmente, é perfeitamente fundada.

A distinção entre conteúdo do fenômeno e a maneira pelo qual ele nos aparece nos permite apreender mais claramente o verdadeiro objeto da fenomenologia. Desde então abre-se um campo novo e infinito de pesquisa. Se desejamos ter a medida de sua amplidão, basta passar em revista uma série de termos equivalentes dos quais nos servimos desde o início deste ensaio sem ainda notar sua referência a um mesmo objeto, aquele da fenomenologia precisamente. Ei-los sob sua forma verbal: se dar, se mostrar, advir à condição de fenômeno, se desvelar, se descobrir, aparecer, se manifestar, se revelar. Sob sua forma substantiva: doação, mostra, fenomenalização, desvelamento, descobrimento, aparição, manifestação, revelação.

Ora não pode nos escapar que estas palavras chaves da fenomenologia são também, em uma grande medida, aquelas da religião — ou da teologia. Uma outra palavra, não das menores posto que conduz o pensamento filosófico desde a Grécia, remete também ao objeto verdadeiro da fenomenologia, a verdade. Existem duas maneiras de entender a verdade, uma pré-filosófica, pré-fenomenológica, ingênua por assim dizer: ” verdade” designa então aquilo que verdadeiro. Aquilo que é verdadeiro, é que o céu se cobre de nuvens e que vai talvez chover. O que é verdadeiro, é ainda que 2 + 3 = 5. Só que aquilo que é verdadeiro desta maneira — o estado do céu ou a proposição aritmética — deve primeiramente mostrar-se a mim. Só é verdadeiro em um sentido segundo e pressupõe uma verdade originária, uma manifestação primeira e pura — um poder desvelante sem o qual nenhum desvelamento se produzirá, sem o qual, por conseguinte nada daquilo que verdadeiro em um sentido secundário, daquilo que é desvelado, não seria possível. É mérito de Heidegger ter dado novamente ao conceito filosófico tradicional de verdade uma significação fenomenológica explicita. Da verdade sempre mais ou menos confundida com a coisa verdadeira, ele distingue muito corretamente aquilo que permite precisamente a esta coisa ser verdadeira, quer dizer mostrar-se a nós a título de fenômeno: o puro ato de aparecer, aquilo que ele denomina “o fenômeno o mais originário da verdade”2.

Tão decisivo seja ele, o trajeto que conduziu a fenomenologia, através das análises prestigiosas de Husserl e de Heidegger, ao fenômeno o mais originário da verdade só nos põe ainda em presença de um problema. Que o aparecer puro, que a manifestação pura, que a fenomenalidade pura seja a condição de todo fenômeno possível — isto pelo qual ele se mostra a nós e fora do qual nada pode mostrar-se, de sorte que não teria nenhum fenômeno de qualquer espécie -, isto põe sem dúvida este aparecer no coração da reflexão fenomenológica como seu tema único ou seu verdadeiro objeto, mas não diz ainda de maneira nenhuma em que este puro aparecer consiste.

No § 44, a análise de Heidegger nos reconduziu da verdade segunda — aquilo que é verdadeiro, aquilo que é desvelado — à verdade originária — aquilo que se desvela, o desvelamento. No entanto, a verdade originária não apresentada somente, de maneira ainda especulativa, como a condição da verdade segunda — o desvelamento como a condição do desvelado —, o aparecer como a condição de tudo aquilo que aparece. A verdade originária é explicitamente designada como um fenômeno, “o fenômeno o mais originário da verdade”. Aquilo que está implicado em tal proposição, é que a verdade originária é ela mesmo “fenômeno”. Mais que esta verdade, é seu fenômeno em fim de contas que é “o mais originário”.

O que quer dizer: o aparecer não se limita de modo algum a fazer aparecer aquilo que nele aparece, ele deve aparecer ele mesmo enquanto aparecer puro. Com efeito, nada jamais aparecerá se seu aparecer (o puro fato de aparecer, o aparecer puro) não aparecesse ele mesmo e inicialmente. A mesa, a taça posada sobre ela, dizíamos, são incapazes de aparecer por seu próprio fato, por sua própria força, em razão de sua natureza ou de sua substância própria, que é matéria cega. É portanto um poder diferente delas que as faz aparecer. Quando elas efetivamente aparecem, oferecendo-se a nós a título de “fenômenos”, nada mudou quanto a esta impotência que lhes é congênita. O aparecer que brilha em todo fenômeno é o fato do aparecer e dele apenas; é este aparecer puro que aparece, um aparecer do aparecer ele mesmo, seu auto-aparecer.

Se nos indagamos então a fenomenologia histórica sobre este último, sobre a fenomenalidade do fenômeno o mais originário da verdade — sobre aquilo que faz que o aparecer puro apareça enquanto tal -, sobre aquilo que, neste aparecer puro, constitui precisamente sua própria aparição, sua substância fenomenológica pura, sua matéria incandescente, por assim dizer, naquilo que ela tem de incandescente, então podemos distinguir dois momentos nos textos oferecidos para nossa análise. Em um primeiro momento, depara-se com uma não-resposta. A aparição, a verdade, ou seu fenômeno originário, a manifestação, a revelação, a fenomenalidade, são afirmadas sem que se diga em que elas consistem, sem o problema seja posto. As pressuposições da fenomenologia permanecem totalmente indeterminadas.


  1. Gegenstande Un Wie” [Husserl, Leçons pour une phénoménologie de la conscience intime du temps, trad. fr. H. Dussort, Paris, PUF, 1964, p. 157, designada doravante Leçons nas referências.] 

  2. “das ursprunglichste Phänomen der Warheit”, op. cit., p. 220-221.