Michel Henry (Carne:§3) – O preconceito oculto das pressuposições da fenomenologia

Excertos de «Incarnation. Une philosophie de la chair. Seuil, 2000.

Premiére partie — Le renversement de la phénoménologie

§3. O preconceito oculto das pressuposições da fenomenologia. A redução que reduz a ruínas todo “aparecer”, ao aparecer do mundo. (minha tradução)

Assim convém retornar às pressuposições da fenomenologia histórica. Sua indeterminação se lia, digamos, no caráter puramente formal dos princípios nos quais elas se exprimem. “Tanto de aparecer, tanto de ser.” — “Direto às coisas mesmas!”: qual aparecer? Qual ser? Quais “coisas”? Que significa “ir direto à”? Não se percebe então que na fenomenologia histórica esta indeterminação é apenas provisória ou aparente? Por trás dela e a seu favor se insinua certa concepção da fenomenalidade, aquela mesma que se apresenta inicialmente ao pensamento ordinário e que, ao mesmo tempo, constitui o preconceito mais antigo e menos crítica da filosofia tradicional. É a concepção da fenomenalidade que foi tomado por empréstimo à percepção dos objetos do mundo, seja, no final das contas, ao aparece do mundo ele mesmo.

Não se pode certo esquecer o aporte da fenomenologia, sua atitude a discernir, no seio mesmo dos fenômenos do mundo, o poder que os faz aparecer, a maneira do qual é feito e, finalmente, este aparecer ele esmo. Resta que, os fenômenos, espontaneamente submetidos à análise, sendo aqueles do mundo, o aparecer liberado a partir deles não poderia ser outro que aquele no qual tais fenômenos se mostram a nós: o aparecer do mundo e nenhum outro. O conceito formal e ainda indeterminado do aparecer cede sub-repticiamente lugar a um conceito totalmente diferente, perfeitamente determinada desta vez. Enquanto a pertinência do conceito formal e vazio do aparecer se estende, em um primeiro tempo pelo menos, a todo fenômeno possível, a toda forma de manifestação ou de revelação concebível, podendo servir de guia a questionamentos novos, isto não é mais assim quando o aparecer é reduzido àquele do mundo. Uma limitação decisiva se insinuou fraudulentamente na pesquisa. Modos de aparecer abrindo sobre formas de experiências talvez essenciais encontram-se excluídos a priori por uma filosofia que se pretendia livre de toda pressuposição.

Suponhamos por exemplo que um corpo só possa dar-se a nós no mundo, entendamos bem, no aparecer do mundo, a ponto que algumas de suas propriedades essenciais decorram deste modo de aparecer e sejam determinadas por ele. Neste caso, uma fenomenologia do mundo fornecerá uma chave de uma grande fecundidade para a compreensão dos fenômenos corporais. Se ela estabelece que as intuições de espaço e de tempo são co-constitutivas do aparecer do mundo sob a forma portanto de uma espacialidade e de uma temporalidade fenomenológicas originais, ela disporá do arquétipo inteligível de todo corpo possível antes de encontrar em cada um as propriedades que pertencem em virtude de seu modo de aparecer.

Suponhamos agora que nenhuma carne possa se mostrar no mundo — no aparecer do mundo -, este modo de aparecer sendo entretanto o único conhecido do pensamento. Tudo leva a crer que o modo de revelação próprio à carne estando oculto à princípio, a natureza desta se encontraria inevitavelmente falsificada, confundida com aquela do corpo. A essência da carne ilusoriamente reduzida àquela do corpo investido de uma carne que lhe é, ela mesma, estrangeira, esta carne/corpo ou este corpo/carne se proporia como uma espécie de misto, um ser duplo, sem que a razão última desta duplicidade possa ser produzida.

E o que concluir da proposição joanina que está no centro de nossa investigação? Que o Verbo tenha vindo em uma carne quer dizer tanto que ele veio em um corpo, e assim, porque um corpo pertence ao mundo, que ele veio ao mundo desta maneira, vindo em um corpo. Mas vir ao mundo em um corpo, isto quer dizer também revestir a condição humana. Isto implica igualmente que os homens são seres do mundo, seres que se trata de compreender a partir dele. Somente, aí ainda, João não diz nada como tal. Segundo ele os homens são os Filhos de Deus. Devem portanto ser reconhecidos a partir de uma outra inteligibilidade que aquela do mundo. A partir de uma Arque-inteligibilidade de onde são Filhos, e que só pertence a Deus. Esta irradia sobre tudo que se encontra nela e por ela gerado, sobre seu Verbo, portanto, sobre sua vinda em uma carne, sobre esta carne ela mesma enquanto vem dela, sobre a nossa enfim enquanto semelhante à sua. Mas tudo isto, ainda uma vez, supõe um modo de aparecer radicalmente estranho àquele do mundo.

A confusão do aparecer do mundo com todo aparecer concebível não barra somente o acesso ao cristianismo. Corrompe o conjunto da filosofia ocidental antes de atingir a fenomenologia ela mesma. Na fenomenologia husserliana, é o princípio o mais famoso, “o princípio dos princípios”, que expõe esta confusão em toda a sua amplitude.

No parágrafo 24 de Ideen I, o princípio dos princípios se coloca, “toda intuição dadora originária como uma fonte de direito para o conhecimento”1. “Intuição” é um conceito fenomenológico: ela se relaciona não a um objeto mas a seu modo de aparecer. Por isto é dita “dadora”, porque um modo de aparecer e um modo de doação. Por isto também ela é aqui qualificada de “originária”. Pois se considera-se não mais as coisas mas a maneira que se dão a nós, é evidente, por exemplo, que elas podem se dar claramente ou na confusão. Se percebo certamente uma mesa em uma sala onde me encontro e se concentro sobre ela minha atenção, sobre a face pelo menos que é voltada para mim, esta me dada “originariamente”. Se trata-se de uma mesa que se encontrava na sala onde minha mãe me ensinava piano em tempos idos, dela tenho apenas uma vaga lembrança. A percepção é “uma intuição dadora originária”, a lembrança não: nada mais é que uma re-presentação secundária de uma percepção primeira e não poderá atingir o mesmo grau de evidência e de certeza.

Agora, se a intuição é um modo de aparecer, é preciso dizer, como o temos reivindicado sem cessar, em que consiste este aparecer, como aparece e assim como faz aparecer nele tudo isto que se dá de aparecer. Sob formulações diversas, a resposta é de uma grande clareza, sempre a mesma. Aquilo que se dá na intuição e faz dela uma intuição “dadora”, é a estrutura da consciência tal qual a compreende Husserl: é a intencionalidade. É à intencionalidade que a intuição deve seu poder fenomenológico, de instituir na condição de fenômeno e para isto fazer surgir a fenomenalidade. Este por em fenomenalidade consiste no movimento pelo qual a intencionalidade se projeta fora de sei em se transpondo em direção aquilo que se encontra desde então posto diante de seu olhar e que Husserl denomina seu “correlato intencional” ou ainda um “objeto transcendente”. É o por à distância deste objeto no “fora” primitivo onde se transpõe a intencionalidade que constitui a fenomenalidade na sua pureza. É neste “fora”, no “fora de si” do movimento mesmo pelo qual a intencionalidade se transpõe fora de si que consiste a fenomenalização da fenomenalidade pura ou, para falar como Heidegger, o “fenômeno mais originário da verdade”.

Observa-se então sem dificuldade, nesta concepção da fenomenalidade, como os princípios da fenomenologia enunciados por Husserl partem aqui de sua indeterminação primeira. Não somente o princípio dos princípios, posto que a intuição retira seu poder fenomenológico — seu papel de “fonte de direito” de todo conhecimento — na intencionalidade. A palavra de ordem da fenomenologia se esclarece da mesma maneira. O zu do “zu den Sachen selbst”, o movimento que conduz “direto às coisas mesmas”, é igualmente a intencionalidade. Esta é descrita de maneira rigorosa como um “relacionar-se-ao-objeto transcendente”, de tal maneira que o “relacionar-se-a” pertence à realidade da consciência, é “um caráter interno do fenômeno”, enquanto o objeto é rejeitado fora dela.2. Assim é traçado um corte bem nítido entre a realidade substancial da consciência e aquilo que posto fora dela, aquilo que dela não faz parte — o que quer dizer em fenomenologia a palavra “transcendente”3.

Um equívoco de uma extrema importância deve então ser afastado. Se a intencionalidade pertence à realidade da consciência enquanto o objeto ao qual ela se relaciona se situa fora dela, não convém colocar “na” consciência o poder que revela, quer dizer a revelação ela mesma? Não haverá aí neste caso uma “interioridade” da consciência oposta a exterioridade do objeto? Em que consiste no entanto esta suposta interioridade? Do momento que esta é compreendida como intencionalidade, ela nada mais é que o movimento pelo qual ela se projeta para fora, sua “realidade”, sua “substância”, decorrem e esgotam-se nesta vida para fora, no processo de exteriorização no qual se exterioriza a exterioridade como tal. Porque é esta volta para fora que produz a fenomenalidade, a revelação que opera a intencionalidade é rigorosamente definida: ela se realiza nesta volta para fora e lhe é idêntica. Revelar em uma tal volta para fora, em um pôr-se à distância, é fazer ver. A possibilidade da visão reside neste pôr-se à distância daquilo que posto diante do ver e assim visto por ele. Tal é precisamente a definição do ob-jeto. Ob-jeto quer dizer: posto diante e tornado visível desta maneira. A intencionalidade é este fazer ver que revela um objeto. A revelação é aqui a revelação do objeto, o aparecer é o aparecer do objeto. E isto em um duplo sentido: neste sentido que aquilo que aparece é o objeto, neste sentido que, aquilo que aparece sendo o objeto, o modo de aparecer implicado neste aparecendo que é o objeto, é o modo de aparecer próprio ao objeto e tornando-o possível: este por à distância no qual surge a visibilidade de tudo isto que é suscetível de se tornar visível para nós.

Não se poderia minimizar o alcance da análise intencional inaugurada por Husserl. Ela consiste inicialmente em uma descrição sistemática dos diversos tipos de intencionalidades de intuições, de todas as maneiras de fazer ver que dispõe a consciência e com as quais ela coincide: percepção, imaginação, intencionalidades significantes como aquelas que formam as significações veiculadas pelas palavras da linguagem, intuição das “essências”, intuição categorial que aporta à evidência os objetos ideais como as relações lógicas, etc. As grandes formas de experiência que são as nossas e que designamos sob o título global como “experiência do mundo”, experiência do outro”, “experiência estética” fazem intervir na realidade uma pluralidade de intencionalidades de tipos diferentes. Por exemplo a percepção dos objetos sensíveis que nos cercam implica em realidade naquela das aparições subjetivas que correm sem cessar em nós e assim as intencionalidades constitutivas da consciência interna do tempo que já nos deparamos. NA análise deste fenômeno muito simples que é a audição de um som, cada som, vimos, ou cada fase sonora de um mesmo som, nos é dado no futuro, no presente e enfim no passado. Cada um deste modos de aparição é o fato de uma intencionalidade específica, a “protenção” que dá a fase sonora como a vir mas em primeiro lugar o futuro ele mesmo, a consciência do presente que dá ao presente, a retenção que dá ao passado. Vê-se sem dificuldade que cada um destes tipos de intencionalidades evidenciadas por Husserl é indispensável à percepção mais elementar de um objeto do mundo.

Assim opera-se, com a descoberta e a análise destes múltiplos tipos de intencionalidades em operação na infinita diversidade das experiências humanas, uma extraordinária extensão do campo da visão. Porque cada tipo de intencionalidade é propriamente uma maneira de fazer ver aquilo que sem ela não será jamais visto, esta extensão do reino do ver é identicamente aquela do domínio daquilo que é visto e assim, em grande medida, a descoberta de novos domínios de objetos. Trata-se de uma compreensão ampliada e aprofundada de todos os tipos de objetos com os quais nos é possível entrar em relação.

A definição intencional da experiência confere a esta um novo traço que merece, ele também, uma breve menção. A intencionalidade com efeito jamais se limita à visão daquilo que é visto por ela. Aquilo que é visto, ao contrário, é de tal natureza que deve-se discernir nele aquilo que é realmente visto, dado nele mesmo, “pessoalmente”, e aquilo que apenas “visado no vazio”. Assim na percepção de um cubo, somente uma das faces é percebida por mim em uma evidência incontestável enquanto as outras apenas são visadas sem ser realmente dadas. Da mesma maneira para as aparições sucessivas da casa, só a fase atual guarda um dado verdadeiro. Ora a intencionalidade não se prende jamais na intuição da face visível, sempre se projeta em direção das faces ou fase não dadas. Toda intuição “preenchida” se cerca de um horizonte de aparições potenciais, toda presença efetiva de um horizonte de não-presença ou de presença virtual. Porque a intencionalidade visa, além do dado, o não-dado ela jamais é um ato isolado, mas inscreve-se em um processo de conhecimento cuja teleologia imanente é de crescer sem cessar o campo do ver. Em um tal processo, todas as significações implicadas potencialmente na evidência atual vêm por sua vez à evidência, de sorte que elas a completam, a confirmam, a infirmam — a “excluem”, diz Husserl -, a modificam ou a corrigem de alguma maneira. É portanto cada vez uma nova evidência, um novo ver que permite o progresso indefinido do conhecimento.

A estrutura do conhecimento tomada emprestada àquela da intencionalidade, o fazer ver no qual esta consiste rege o conjunto das relações que religam o homem ao ser. É neste sentido que a fenomenalidade é prévia ao ser: nisto o fazendo ver. Este império do ver ressalta com força deste texto de dos assistentes de Husserl: É preciso ver, somente ver.” E que este ver seja o princípio, que não seja para analisar mas apenas a desdobrar-se, é o que é dito não menos explicitamente : “É preciso por em ação a visão, instaurar a evidência originária de sorte que ela seja critério final […], a visão só se legitima na sua operação […]. Não se poderia ir por trás da visão […]. A visão pode ser imprecisa, lacunar, mas apenas uma nova visão mais precisa e mais completa pode retificá-la. A visão pode “enganar”, se ver errado: a possibilidade de engano contradiz tão pouco a visão que apenas uma melhor visão pode retificar o engano.4 A intencionalidade é o “relacionar-se a” que se relaciona a tudo aquilo para qual temos acesso como a qualquer coisa que se tenha diante de nós. Desta maneira, ela nos descobre o império imenso do ser. Mas este “relacionar-se a”, como se relaciona não mais a qualquer ob-jeto possível, a todo ser “transcendente”, mas a si mesmo? A intencionalidade que revela toda coisa, como se revela a ela mesma? É dirigindo sobre ela mesma uma nova intencionalidade? A questão não se coloca então a respeito desta última? A fenomenologia pode escapar ao amargo destino da filosofia clássica da consciência, levada a uma regressão sem fim, obrigada a colocar um segunda consciência atrás daquela que conhece — no caso uma segunda intencionalidade atrás daquela que tenta-se tirar da escuridão? Ou bem existe um outro modo de revelação que o fazer ver da intencionalidade — uma revelação cuja fenomenalidade não seria mais aquela do “fora”, deste plano frontal de luz que é o mundo?

Não há resposta a esta questão na fenomenologia husserliana. Assim nela tem início uma crise de uma extrema gravidade. Esta tem em primeiro lugar um caráter redutor do conceito de fenomenalidade posto em ação por ela. Nosso destino se limita verdadeiramente à experiência do mundo — quer se trate de um mundo sensível ou inteligível? Conhecer não é outra coisa que ver? E se conhecimento consiste em uma tal visão, que nos dirão da visão ela mesma? Que jamais viu sua própria visão? Todas as nossas experiências, sobretudo aqueles que suscitam a “grande caça” da qual fala Nietzsche, se deixam encerrar no conhecimento no sentido de uma relação entre um ver e aquilo que é visto, nada mais são que experiências teóricas? Mais grave que esta redução que subsiste no estado implícito quando ela não é assumida em uma decisão deliberada é a aporia que dela resulta. É a possibilidade mesmo da fenomenalidade em geral que faz o problema se a intencionalidade é incapaz de garantir ela mesma sua própria promoção na condição de fenômeno, se o princípio da fenomenalidade escapa a esta. Aquilo que é visto pode ainda ser visto se a visão ela mesma mergulha na noite e não é mais nada?


  1. Husserl, Ideias diretoras para uma fenomenologia, t. I, trad. fr. Paul Ricoeur, Paris, Gallimard, 1950, p. 78, designado doravante Ideen I nas referências. 

  2. Husserl, A Ideia de Fenomenologia, trad. A. Lowit, paris, PUF, 1970, p. 71, designado doravante A Ideia… nas referências. 

  3. O sentido fenomenológico da “transcendência” opõe-se assim totalmente a seu uso tradicional — filosófico ou religiosos -, que visa ao contrário aquilo que escapa ao mundo, seu “além”. 

  4. Eugen Fink, “Le problème de la phénoménologie”, in De la phénoménologie, trad. D. Franck, Paris, Editions de Minuit, 1974, respectivamente p. 212 et 225. “Fink escreve ainda: “A hipótese da fenomenologia husserliana repousa sobre a suposição que a consciência originária entendida de maneira intencional é o verdadeiro acesso ao ser.”