O tecnicismo da técnica moderna se diferencia fundamentalmente daquele que inspirou todas as anteriores. Surge nas mesmas datas que a ciência física e é filho da mesma matriz histórica. Vimos como até aqui o técnico, obcecado pelo resultado final que é o apetecido, não se sente livre diante dele e busca meios que de um golpe e em totalidade consiga produzi-lo. O meio, eu disse, imita a sua finalidade.
No século XVI chega à maturidade um novo modo de funcionar as cabeças que se manifesta ao mesmo tempo na técnica e na mais pura teoria. Mais ainda, é característico desta nova maneira de pensar que não possa dizer-se onde começa, se na solução de problemas práticos ou na construção de meras ideias. Vinci foi em ambas as ordens o precursor. É homem de oficina, não somente e nem sequer principalmente de oficina de pintura, mas de oficina mecânica . Passa a vida inventando “artifícios”.
Na carta onde solicita emprego de Ludovico Moro adianta uma longa lista de invenções bélicas e hidráulicas. O mesmo que na época helenística os grandes poliorcetas deram ensejo aos grandes avanços da mecânica que terminam prodigiosamente no prodigioso Arquimedes, nestas guerras de fins do século XV e começos do XVI se prepara o crescimento decisivo do novo tecnicismo . Nota bene: umas e outras guerras eram guerras falsas, quero dizer, não eram guerras de povos, guerras férvidas, pelejas de sentimentos inimigos, mas guerras de militares contra militares, guerras frígidas, guerras de cabeça e punho, não de víscera cordial. Por isso, guerras. . . técnicas.
Isso que ocorria em 1540 era a moda no mundo das “mecânicas”. Esta palavra, registre-se, não significa então a ciência que hoje absorveu esse termo que ainda não existia; significa as máquinas e a arte delas. Tal é o sentido que tem ainda em 1600 para Galilei, pai da ciência mecânica. Toda gente quer ter aparelhos, grandes e pequenos, úteis ou simplesmente divertidos . Nosso enorme Carlos, o V, o de Mühlberg, quando se retira para Yuste, na mais ilustre maré-baixa que registra a história, leva consigo em sua formidável ressaca para o nada somente estes dois elementos do mundo que abandona: relógios e Juanelo Turriano. Este era um flamengo, verdadeiro mago dos inventos mecânicos, aquele que constrói tanto o artifício para subir águas a Toledo — do qual ainda restam traços — quanto um pássaro semovente que voa com suas asas de metal pelo vasto espaço da estância onde Carlos, ausente da vida, repousa.
Importa muito sublinhar este fato de primeira ordem: que a maravilha máxima da mente humana, a ciência física, nasce na técnica. Galilei jovem não está na Universidade, mas nos arsenais de Veneza, entre gruas e cabrestantes. Ali se forma sua mente.
O novo tecnicismo; com efeito, procede exatamente como procederá a nuova scienza. Não vai, sem mais, da imagem do resultado que se quer obter à busca de meios que o consigam. Não. Detém-se diante do propósito e age sobre ele. Analisa-o. Isto é, decompõe o resultado total — que é o único primeiramente desejado — nos resultados parciais de que surge, no processo de sua gênese. Portanto, em suas “causas” ou fenômenos ingredientes.
Exatamente isto é o que fará em sua ciência Galilei, que foi ao mesmo tempo, como se sabe, um gigantesco “inventor”. O aristotélico não decompunha o fenômeno natural, já que para seu conjunto buscava-lhe uma causa também conjunta, à modorra que produz a infusão de amapolas uma virtus dormitiva. Galilei, quando vê mover-se um corpo, faz exatamente o contrário: pergunta-se de que movimentos elementares e, portanto, gerais, se compõe aquele movimento concreto. É isto o novo modo de operar com o intelecto: “análise da natureza”.
Tal é a união inicial — e de raiz — entre o novo tecnicismo e a ciência. União como se vê nada externa, mas de idêntico método intelectual. Isto dá à técnica moderna independência e plena segurança em si mesma. Não é uma inspiração como mágica nem puro acaso, mas “método”, caminho preestabelecido, firme, consciente de seus fundamentos.
Grande lição! Convém que o intelectual maneje as coisas, que esteja próximo delas; das coisas materiais se é físico, das coisas humanas se é historiador. Se os historiadores alemães do século XIX houvessem sido mais homens políticos, ou mesmo mais “homens de mundo”, talvez a história fosse hoje já uma ciência e junto a ela existisse uma técnica realmente eficaz para atuar sobre os grandes fenômenos coletivos, diante dos quais, seja dito com vergonha, o atual homem se encontra como o paleolítico diante do raio.
O chamado “espírito” é uma potência demasiado etérea que se perde no labirinto de si mesma, de suas próprias infinitas possibilidades. É demasiado fácil pensar! A mente em seu voo quase não encontra resistência. Por isso é tão importante para o intelectual palpar objetos materiais e aprender em seu trato com eles uma disciplina de contenção. Os corpos foram os mestres do espírito, como o centauro Quirão foi o mestre dos gregos. Sem as coisas que se veem e se tocam, o presunçoso “espírito” não seria mais que demência. O corpo é o agente policial e o pedagogo do espírito.
Daí a exemplaridade do pensamento físico diante de todos os demais usos intelectuais. A física, como notou Nicolai Hartmann, deve sua ímpar virtude em ser, até agora, a única ciência onde a verdade se estabelece mediante o acordo de duas instâncias independentes que não se deixam subornar uma pela outra. 0 puro pensar a priori da mecânica racional e o puro olhar as coisas com os olhos do rosto: análise e experimento.
Todos os criadores da nova ciência se deram conta de sua consubstancialidade com a técnica . Tanto Bacon como Galilei, Gilbert quanto Descartes, Huygens quanto Hook ou Newton.
Desde então para cá o desenvolvimento — em somente três séculos — foi fabuloso: tanto o da teoria quanto o da técnica. Veja o leitor, no livrinho de Alien Raymond, ¿Qué es la tecnocracia?, traduzido nas edições da “Revista de Occidente”, alguns dados sobre o que hoje pode fazer aquele técnico. Por exemplo:
“O motor humano, numa jornada de oito horas, é capaz de render trabalho, aproximadamente, na proporção de um décimo de cavalo. Hoje em dia possuímos máquinas que trabalham com 300 000 cavalos de potência, capazes de funcionar durante vinte e quatro horas do dia por muito tempo.
“A primeira máquina de conversão de energia distinta do mecanismo humano foi a tosca máquina de vapor atmosférico de Newcomen, em 1712.A primeira máquina dessa marca desenvolve 5,5 cavalos de força, calculada pela quantidade de água que eleva num tempo determinado. Esta máquina atingiu seu máximo tamanho em 1780, com gigantescos cilindros e 16 a 20 percurso de êmbolo por minuto. Tinha uma potência de 50 cavalos, ou seja, 500 vezes a do motor humano. Mas a eficiência da máquina Newcomen era um décimo da máquina humana e requeria 15,8 libras de carvão por cavalo. Tinha outros defeitos, tanto em energia como na parte mecânica, que impediram sua adoção geral.
“A introdução da turbina trouxe um novo tipo de conversão de energia. Enquanto as primeiras turbinas construídas possuíam menos de 700 cavalos e a primeira turbina que se instalou numa estação central era de 5.000 cavalos, as turbinas modernas chegam a atingir 300.000 cavalos, ou seja, 3.000.000 de vezes o rendimento de um ser humano em jornada de oito horas. Calculada sobre a base de vinte e quatro horas de funcionamento, a turbina tem nove milhões de vezes o rendimento do corpo humano.
“A primeira turbina montada numa estação central consumia 6,88 libras de carvão por quilowatt-hora em 1903.
“Houve uma queda no consumo de carvão de 6,88 libras para 0,84 libras num período de 30 anos, o que indica a variação do rendimento ao efetuar o trabalho humano por meio das máquinas.
“O rendimento máximo de civilização no antigo Egito nunca excedeu de 150.000 cavalos em jornada de oito horas, supondo-lhe 3.000.000 de habitantes. Grécia, Roma, os pequenos Estados e Impérios da Idade Média e as nações modernas tiveram o mesmo índice de rendimento até a época de James Watt. Mudanças cada vez mais rápidas ocorreram desde então. O progresso social, desconhecido até agora, avançou lentamente no princípio, depois deu uma corrida, tomou voo e avançou com a rapidez de um foguete. Série após série de desenvolvimentos técnicos varreram os processos industriais de cada década, desde 1800, para deixá-los reduzidos a métodos antiquados do passado.
“A primeira máquina, a de Newcomen, não sobreviveu a seu século. A segunda mudança na conversão de energia, a máquina de Watt, não sobreviveu um século para ser deslocada por uma nova máquina de maior rendimento. Dos 9.000.000 de vezes pelas quais multiplicamos a energia do corpo humano para obter as unidades modernas de energia mecânica atingidas, um aumento de 8.766.000 vezes ocorreu nos últimos vinte e cinco anos.
“Sobre diminuição de horas de trabalho humano desde 1840, notemos que, em aço, o grau de diminuição foi o inverso da quarta potência do tempo; em automóveis, ainda maior; em produção de lingotes de ferro, uma hora de trabalho humano consegue hoje em dia o que seiscentas horas do mesmo trabalho há cem anos. Em agricultura, somente 1/3 000 de horas de trabalho humano por unidade de produto se necessitam comparadas com 1840. Na fabricação de lâmpadas incandescentes, uma hora de trabalho humano realiza tanto como nove mil horas do mesmo trabalho em 1914.
“O grau de diminuição em horas de trabalho humano por unidade de produção, tomadas em conjunto, é, pois, aproximadamente 1/3000.
“Os fabricantes de tijolos, durante mais de cinco mil anos, jamais conseguiram, em média, mais de 450 tijolos por dia e por indivíduo, em jornada de mais de dez horas.
“Uma fábrica moderna de fabricação contínua de tijolos produzirá 400 000 por dia e por homem.”
Não respondo pela exatidão destas cifras. Os “tecnocratas” dos quais procedem são demagogos e, portanto, gente sem exatidão, pouco escrupulosa e apressada. Mas, aquele que tenha esse quadro numérico de caricatura e exagero, não faz senão pôr de manifesto um fundo verdadeiro e inquestionável — a quase ilimitação de possibilidades na técnica material contemporânea.
Mas a vida humana não é somente luta com a matéria, é também luta do homem com sua alma. Que quadro pode a Euramérica opor a esse como repertório de técnicos da alma? Não foi, nesta ordem, bem superior a Ásia profunda? Desde há anos sonho com um possível curso em que se mostrem frente a frente as técnicas do Ocidente e as técnicas da Ásia.