Ortega (Técnica) – Apêndice III Conversão da física em geometria…

Conversão da física em geometria. — Observação ou invenção — Grécia ou Egito

Trata-se, aqui, de uma questão importante: a física, nossa ciência exemplar, encontra-se a ponto de mudar subitamente de aspecto e de caráter. O leitor, por mais distanciado que esteja dos estudos científicos, tem obrigação de esforçar-se em conhecer pelo menos suas grandes vicissitudes. Está claro que o “leitor”, acostumado como está a que se dirijam a ele demagogos — boa porção dos que hoje escrevem o são numa ou noutra medida — acredita que somente têm direitos, que ele não está obrigado a nada. Mas, convém que vá mudando de opinião, e sobretudo de comportamento, sob pena de passar bem mal nos anos porvindouros sobre nossa espécie.

Milne é o físico contra o qual o Dr. Dingler dirigiu seu mais violento ataque. Havia aquele dito que “se o universo efetivo não segue os pormenores da construção matemática, a coisa não tem importância”. Isto sublevou o Dr. Dingler. De que falam então estes novos físicos — pergunta-se o Sr. Dingler —- se pouco se importam que as coisas coincidam ou não com suas elucubrações? A estas extravagâncias leva o “apriorismo”, o aristotelismo. Galilei representa diante de Aristóteles a não crença em que a razão da natureza seja a mesma do homem, e a forçosidade consequente em que este se acha de buscar nas “observações sensíveis” os princípios que aquela deixa entrever. “A história — prossegue Dingler com certa solenidade patética — mostra poucos exemplos de lealdade a um legado comparável com a das gerações de trabalhadores científicos que seguiram.” Por faltar a essa lealdade cai agora a física numa estranha “combinação de paralisia da razão com intoxicação da fantasia”.

Vejamos o que há de verdade em tudo isto. Milne, com uma admirável serenidade de jovem atleta matemático, responde num artigo escrito como somente sabem escrever os matemáticos. Os demais escritores podemos, com esforço, chegar a uma clareza plástica, quase tangível. Mas há outra clareza mais essencial e oposta a essa, uma clareza feita de diafanidade e transparência, como ultraterrena, em que as próprias coisas desaparecem e fica somente no ar limpo, alciônico, sua pura voz. Parece-nos, lendo a estes autores, que as coisas, sem intermediário, sem turgimão, se declaram por si mesmas, dizem-se-nos.

Milne se propõe orientar-nos sobre o uso intelectual, o procedimento que em suas investigações seguiu.

A física padece uma dualidade que é irracional . De um lado nos diz que é o que existe, constrói uma realidade pura — chame-se-a átomo ou como se queira. Depois, e à parte, investiga experimentalmente como se comporta essa realidade. É evidente que a física não será uma disciplina suficientemente racional enquanto estas duas partes dela não se unam; isto é, enquanto não se consegue derivar racionalmente o comportamento das coisas de sua realidade ou estrutura .

É isto o que procuraram, e em boa parte conseguiram, fazer Milne, e com ele Wittrow, Wheele, Robertson, etc.

Milne se propõe aplicar da maneira mais radical possível o princípio da economia do pensamento, que é um princípio filosófico, pelo menos epistemológico e não físico. A este fim tentará derivar todas as leis físicas de um minimum de admissões consistentes na descrição mínima do que existe. Estas admissões são duas: a homogeneidade do Universo — em distribuição e movimento — e a existência de alguém que perceba a relação de antes e depois; em suma, o movimento. Estas admissões ou supostos são constituídos em axiomas, no sentido rigoroso que este termo tem hoje na matemática pura. Desses axiomas Milne deriva teoremas sem empregar notícia alguma experimental, eliminando todas as leis quantitativas (obtidas por observação) da física. A teoria da relatividade lhe induziu a esta tentativa. Pois bem, diz Milne: “É uma coisa surpreendente que a eliminação de todo auxílio empírico, incluindo todo apoio em leis quantitativas da física, possa ser levada tão longe como, com efeito, acontece, não obstante a imperfeição do estado presente da teoria.” Ninguém pôde surpreender-se mais que o presente escritor. Não se trata, pois de uma fé a priori que convide à burla, mas que é preciso reconhecer como um fato de experiência que quando eliminamos todos esses apoios empíricos emergem diante de nós regularidades (como consequências lógicas das hipóteses), as quais têm o mesmo papel que as autênticas leis da natureza, cuja vigência está garantida pela observação. Ora, estas regularidades têm a dignidade de teoremas, e a estrutura ou corpo lógico resultante tem a dignidade (ou te-la-ia se tivesse chegado à perfeição) de uma abstrada geometria baseada em axiomas. Nela derivamos racionalmente do que existe as leis de seu comportamento. Graças a isso deixam estas de ser, como até aqui, costumes contingentes que observamos nas coisas e se convertem em consequências inexoráveis de sua própria constituição ou estrutura. Agora são de verdade leis da natureza e não caprichos dela.

Ou seja — e é isto a grandeza do fato — que a física está a ponto de converter-se numa geometria que entre seus vários axiomas inclui um onde se antecipa a noção de movimento. O qual — passando agora novamente de clareza matemática à clareza plástica — significa que um homem encerrado em sua casa, sem aparelhamento, sem matérias observáveis, por simples combinação de ideias, pode em poucas semanas redescobrir o que exigiu empregar trezentos anos e trinta mil laboratórios. Com este agravante: que não há razão para que esta nova física-geometria não prossiga suas deduções e verifique inumeráveis leis novas.

A dignidade ou caráter matemático desta investigação não permite, está claro, garantir que as coisas se comportam consoante esses teoremas. A observação será quem decida se, com efeito, é assim. Mas é evidente que o papel desta fica, em princípio, invertido. Consoante Dingler, somente a observação nos permite descobrir as leis da natureza. Consoante Milne, pode-se chegar a elas a priori e a observação reduz seu papel a confirmá-las.

Daí que, mesmo no caso de que os teoremas achados por esse método não encontrassem cumprimento dos fenômenos observáveis, o corpo de doutrina obtido prosseguirá tendo seu valor independente como o têm as geometrias de espaços inobserváveis. Houvera sido um crime de lesa-ciência esmagar as tentativas de criar geometrias não-euclideanas com o pretexto de que os meios experimentais de há setenta anos não permitiam decidir se eram aplicáveis ou não. A teoria da relatividade, auxiliada por meios de observação mais precisos, mostrou que o corpo de puros teoremas chamado geometria euclideana não se cumpre nos fenômenos da natureza e que, ao contrário, se cumprem os teoremas da geometria de Riemann. O mesmo acontecerá agora. É preciso criar uma série de puras físicas-geometrias partindo de axiomáticas diferentes.

Recorde-se que uma das coisas que contraíam o diafragma do Dr. Dingler era ouvir a estes novos físicos falar do “universo”. O físico não pode falar senão da porção de realidade que está ao alcance de sua observação. O termo “universo” implica que transcendemos os limites do observável e que nos permitimos supor dogmaticamente como é a porção de realidade inobservável . É isto o que faz Milne e com ele toda física-geometria ao antecipar, em forma axiomática, que o “universo” é homogêneo e isótropo.

Do ponto de vista da física tradicional tem razão o Dr. Dingler neste extremo. Mas Milne responderá a isto com insuperável clareza: em primeiro lugar, o Universo de que eu falo não é é o Universo real, mas o definido por mim no conjunto de meus axiomas. A ele me atenho e de suas características imaginárias deduzo meus teoremas. Depois comparo estes com as leis da física experimental, que ela, sim, fala do real, e vejo que coincidem. Somente então, e agora sim, adquire meu Universo o caráter de real, e não imaginário. Em segundo lugar, eu parto axiomaticamente da homogeneidade do Universo para construir um corpo de consequências lógicas, isto é, para ver a que resultados racionais, a que série de puros teoremas leva essa suposição. Em minha teoria, a homogeneidade do Universo representa exatamente o mesmo papel que o axioma do plano na geometria de Euclides. Mas nem que dizer tem que não somente podem, senão que devem construir-se outras físicas-geometrias partindo de outros supostos. Eu acreditei que devia começar peio caso mais simples: o de um Universo homogêneo. Mas depois conviria tentar, por exemplo, este outro: um Universo em que ao redor de um núcleo homogêneo existam aros de heterogeneidade crescente.

Como se vê, a mudança é profunda. Agora se trata de chegar aos fatos, não por meio da observação, mas ao contrário, por meio de construções imaginárias. Dito em outros termos: a física consistiria na criação de um repertório de mundos ideais, puramente inventados. Cada um desses mundos, tomado em sua totalidade, é o que é preciso comparar com o conjunto dos fatos observados. Aquele mundo ideal deverá ser considerado como o real, em que estes fatos observados encontram melhor acomodação.

Que responderemos, pois, ao dilema em que o Sr. Dingler coloca a questão, ao dilema de se o fundamento da ciência deve ser a observação ou a invenção?

Responderemos, como já fizemos, que isso é o que se discute, não agora, mas desde há trezentos anos; que esse dilema não é, como pretende ser, uma formulação inequívoca do problema . A mera observação não funda a ciência. O Dr. Dingler tem uma ideia bastante ridícula da história do pensamento se acredita que os homens não observaram antes de Galilei e se acredita que a inovação genial deste foi observar. A observação, a de Galilei como a do homem paleolítico, é impossível sem invenção prévia. Os fatos não nos dizem nada espontaneamente. Esperam que nós lhes dirijamos perguntas deste tipo: Sois A ou sois B? Mas A e B são imaginações nossas, invenções.

Depois de tudo, ocorre à física o mesmo que já aconteceu à geometria. Os egípcios tinham uma geometria que era empírica. Os gregos fizeram dessa geometria empírica uma disciplina racional. Na física há também um aspecto grego e um aspecto egípcio. O Sr. Dingler fica com o aspecto egyptian, que em inglês soa a alguma coisa parecida com “cigano”.

La Nación, de Buenos Aires, 26 de outubro de 1937.

ORTEGA Y GASSET, JOSÉ. Meditação da Técnica. Tradução: Luis Washington Vita. Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, 1963.