Ortega (Técnica) – Apêndice I Uma polêmica na região mais pacífica

O planeta se pôs nervoso e quase não há países, grupos, homens que conservem plena serenidade . Isto revela, está claro, que a serenidade anterior não era profunda nem sólida. E isso convida a que se vá pensando a sério sobre quais são as condições que permitiriam ao homem, pelo menos ao homem do Ocidente, constituir-se uma serenidade mais robusta e de mais firme embasamento. Porque a serenidade é o atributo primário do homem. Todos seus demais dons ou não são especificamente humanos ou são fruto nascido na gleba nobre de sua serenidade. Quando o homem a perde dizemos que está “fora de si”. E então rebrota nele o animal. Porque “estar fora de si”, escravo da inquietação de seu contorno, em perpétuo sobressalto e nervosismo, é a característica do animal. Conseguir libertar-se desse servilismo, deixar de ser um autômato que o contorno mobiliza mecanicamente, desprender-se do que está ao redor e pôr-se em si mesmo, ensimesmar-se, é o privilégio e a honra de nossa espécie. Façamos, pois, propaganda da serenidade, supremo específico.

Porque cada dia a irritação aumenta e, como uma viva maré, chega a alturas que pareciam inatingíveis. “Em todo cimo há calma”, dizia Goethe. Pois bem, não há dúvida que um dos cimos de nossa vida ocidental era a ciência física e o grupo de homens que a cultivam, sobretudo na Inglaterra. Mas eis aqui que também os físicos ingleses se põem um pouco nervosos.

Desde há gerações, talvez o lugar mais tranquilo da terra era o semanário científico que se publica nas Ilhas Britânicas sob o título Nature. Não é sintomático o fato de que também nesse calmo periódico de naturalistas tenha havido arruaça?

No número de 8 de maio, o Dr. Herbert Dingler publica um artigo encimado pelo título “Novo aristotelismo”, Modern Aristotelianism. O artigo é breve, breve como uma chicotada. O autor o açoita sobre os lombos dos maiores físicos ingleses atuais, que são, talvez, afora Einstein, os maiores do mundo. Eddington, Milne, Dirac, todos recebem seu vobiscum. A resolução e o laconismo com que em matéria tão grave, tão complicada e. . . tão discutível procede o Dr. Dingler deixam ver, apesar de todo o self-control britânico, que o inspirou o mau-humor. Entre as linhas nos parece ver a cara do autor, a quem não conhecemos, a cara de um homem que está farto de coisas que lhe são antipáticas e contra as quais arremete simplesmente porque lhe são antipáticas. O Dr. Dingler chega a disparar, ao que parece contra aqueles grandes físicos, a acusação de “traidores”. Traidores a quem ou a quê? É isto que veremos.

O artigo do irrascível Sr. Dingler atraiu sobre a revista um dilúvio de cartas. Tantas que o diretor achou-se na obrigação de dedicar no número de 12 de junho um suplemento a esta polêmica.

Desde há anos se publicam com progressiva frequência livros de questões físicas que pertencem a um novo tipo de produção intelectual. Nestes livros se determina a estrutura do “universo” e isto se faz a priori, em pura dedução matemática . Partindo de certas hipóteses mínimas a que se dá forma de puros axiomas, constitui-se um corpo de doutrinas estritamente racional, na qual aparecem as leis físicas conhecidas como teoremas derivados daqueles axiomas e, o que é mais surpreendente ainda, obtém-se, por simples inferência da lógica matemática, novas leis. O experimento, a indução não aparecem em parte alguma.

Ao Sr. Dingler lhe fazem mal as orações deste novo uso intelectual. Que é isso de falar do “universo”? A ciência física nasce com Galilei quando a ciência renuncia a falar do universo e se limita a dizer-nos como são os “fenômenos manifestos”. Para isso procura ater-se à observação sensível e evita confundir as leis com as hipóteses de trabalho. Em suma, Galilei e as gerações que levantaram o edifício da física clássica abstiveram-se de raciocínios a priori. Partiam dos fatos perceptíveis e depurando-os, generalizando a descrição deles, chegavam aos “fatos gerais” que são as leis físico-matemáticas. Falar do “universo” e falar a priori eram, precisamente, as duas feias coisas que vinham fazendo desde séculos os aristotélicos contra os quais lutou tão denodadamente Galilei. O aristotélico — ente vago que, sem maiores precisões, conjura aqui o Dr. Dingler — acredita que analisando e baralhando, sem outro instrumento que a lógica, nossos conceitos, isto é, as ideias que encontramos em nossa mente, podemos averiguar o que absolutamente ocorre no mundo, que, tomado assim, como alguma coisa absoluta, teria direito ao nome de universo. Isto vem a ser tirar-se o mundo da cabeça. O aristotélico se comportava assim porque pensava por antecipado, isto é, acreditava que o mundo obedece às mesmas regras que os pensamentos humanos. Consoante o Dr. Dingler, o aristotelismo consiste em presumir que o homem é a medida das coisas.

Ao contrário, Galilei apercebeu-se que a natureza é independente do homem. Este não tem previamente garantia alguma de como se comporta a natureza. E, por isso, se quer averiguar alguma coisa dela não tem outro remédio senão observá-la e tem que contentar-se com o que esta observação lhe descubra. Este ofício de observar com precisão os fatos sensíveis é a disciplina física que já tem três séculos de ilustre exercício. Como lema de seu artigo copia o Sr. Dingler uma frase da primeira Charta fundacional — 1662 — da Sociedade Real de Londres, “cujos estudos destinar-se-ão em promover o conhecimento das coisas naturais e as artes úteis por meio de experimentos”. E em continuação, como segundo lema de combate, cita estas palavras de Galilei: “A natureza não se preocupa de se suas abstrusas razões e métodos de operar são ou não acessíveis à capacidade do homem.” Pois bem, consoante nosso atrabiliário articulista, os físicos atuais traíram a esta tricentenária consigna. Desertaram de sob a bandeira galileana e passaram-se ao inimigo.

Nota-se que o Dr. Dingler é um inglês cem por cento. Comodamente instalado no empirismo tradicional de sua nação, não pode suportar que outro da mesma tribo e clã, outro britânico, outro físico, Eddington, tenha a insolência de escrever coisas como estas: “Em todo o sistema das leis físicas não há nenhuma que não possa ser inequivocamente deduzida de considerações epistemológicas . Uma inteligência que não soubesse qual é o sistema intelectual mediante o qual a mente humana se interpreta a si mesma o conteúdo de sua experiência sensível, seria capaz de adquirir todo o conhecimento físico que nós adquirimos a força de experimentos.”

A impertinência contra o método experimental não pode ser de mais alentado tomo. Para saber o que, consoante nossa ciência, ocorre neste mundo, não faz falta nem sequer ter estado nele; menos ainda, nem sequer ter ouvido falar dele. Basta com ter notícia da matemática e do princípio de economia do pensamento, que é um princípio doméstico, intra-humano e, por que não dizê-lo, filosófico.

Para o Dr. Dingler tudo isto é puro aristotelismo, termo que sob sua pena se carrega de uma significação quente e abafadiça como o dessas palavras confinadas nos bairros periféricos do dicionário e que não se podem pronunciar em sociedade. Aristotelismo é “a doutrina consoante a qual a natureza é a manifestação visível de princípios gerais que a mente humana conhece sem necessidade da percepção sensível”.

Não podemos reprimir um leve movimento de surpresa ao ler isto, porque é de sobra conhecido que Aristóteles e seus sequazes não admitem nada no intelecto que não tenha estado antes nos sentidos. Por outro lado, o fundador do pensamento moderno, Descartes, luta acirradamente com Aristóteles e com o escolasticismo porque são sensualistas. A cruzada cartesiana vai contra o conhecimento sensível, quer libertar o homem de sua escravidão sensorial. E contudo há mais.

“Não é fácil — prossegue o Sr. Dingler — enunciar numa frase a ideia que, pela primeira vez no século XVII, produziu a ‘ciência experimental’ chamada hoje ciência, mas não cremos cometer erro apreciável se afirmarmos que o primeiro passo no estudo da natureza deve ser a observação e que não se devem admitir princípios gerais que não sejam derivados da indução a que se submete o observado.”

O caso é que desde há trezentos anos se discute precisamente isso que o Sr. Dingler dá como coisa livre de possível erro. Discute-se, desde os tempos do próprio Galilei, se a ciência é observação ou alguma coisa mais. Porque as objeções mais fortes que os aristotélicos opunham a Galilei consistiam em satirizar-lhe por não ajustar-se estritamente ao que se observa, no experimento.

Pois fora oportuno recordar ao articulista que os aristotélicos, diante dos quais se achava Galilei, eram predominantemente nominalistas, gentes que não acreditavam — fazia já dois séculos — que a natureza fosse racional e que, por isso mesmo, somente cabia dela um conhecimento empírico, de observação, que se contentasse com formar teorias onde “se salvassem as aparências”, onde os “fenômenos manifestos” fossem de algum modo ordenados. E por isso em Paris e em Pádua se faziam experimentos cem anos antes que em Pádua estudasse Galilei.

Como se vê, basta com recolher nossas primeiras reações ao artigo do Sr. Dingler para fazer-nos pensar que este enérgico paladino anda um pouco aos trompaços com a história da ciência e propende a crer que as coisas são menos desesperadamente complicadas e problemáticas do que são. Pois com surpreendente ingenuidade e como dando o dilema por resolvido de antemão, procura cingir a questão para não deixar-nos fugir, nesta fórmula: “A questão que agora está diante de nós é se o fundamento da ciência deve ser a observação ou a invenção.”

Trezentos anos, Sr. Dingler, trezentos anos faz que as pessoas da Europa ruminam essa questão para o senhor resolvida, está claro!

E, no entanto, não há um pouco de razão ou, pelo menos, de compreensível motivo nesta quixotesca saída do apaixonado doutor? Não há alguma coisa na física atual que inquieta, que preocupa pelo porvir desta ciência? Ninguém duvida de que estes últimos vinte e cinco anos foram uma das grandes épocas da física e de que esta é uma das grandes coisas que até agora pariu a humanidade, uma das grandes etapas da história humana. E, contudo…

La Nación, de Buenos Aires, 19 de setembro de 1937.

ORTEGA Y GASSET, JOSÉ. Meditação da Técnica. Tradução: Luis Washington Vita. Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, 1963.