Ortega (Técnica) – I Primeira escaramuça com o tema

Um dos temas que nos próximos anos será debatido com maior brio é o do sentido, vantagens, danos e limites da técnica. Sempre considerei que a missão do escritor é prever com ampla antecipação o que será problema, anos mais tarde, para seus leitores e proporcionar-lhes a tempo, isto é, antes de que o debate surja, ideias claras sobre a questão, de modo que entrem no fragor da contenda com o ânimo sereno de quem, em princípio, já a tem resolvida. On ne doit écrire que pour faire connaître la vérité — dizia Malebranche, voltando as costas à literatura. Há muito tempo, dando-se ou não conta disso, o homem ocidental não espera nada da literatura e volta a sentir fome e sede de ideias claras e distintas sobre as coisas importantes.

Assim sendo, agora me atrevo a remeter a La Nación as notas, nada literárias, de um curso universitário dado há dois anos, em que se procurava responder a esta pergunta: Que é a técnica?

Intentemos um primeiro ataque, ainda tosco e de longe, a essa interrogação.

Acontece que, quando chega o inverno, o homem sente frio. Este “sentir frio o homem” é um fenômeno em que aparecem unidas duas coisas bem distintas. Uma, o fato de que o homem encontra em torno de si essa realidade chamada frio. Outra, que essa realidade lhe agride, que se apresenta diante dele com um caráter negativo. Que quer dizer aqui negativo? Alguma coisa bem clara. Tomemos o caso extremo. O frio é tal que o homem se sente que morre, isto é, sente que o frio o mata, o aniquila, o nega. Pois bem, o homem não quer morrer, ao contrário, normalmente anela sobreviver. Estamos tão habituados a experimentar nos demais e em nós este desejo de viver, de afirmar-nos diante de toda circunstância negativa, que nos custa um pouco tomar consciência do estranho que é, e nos parece absurda ou talvez ingênua a pergunta: Por que o homem prefere viver a deixar de ser? E, contudo, trata-se de uma das perguntas mais justificadas e discretas que possamos fazer-nos. Nestes casos costuma-se falar em instinto de conservação. Mas acontece: 1.°, que a ideia de instinto é em si mesma bastante obscura e nada esclarecedora; 2.°, que ainda que fosse clara a ideia, é coisa notória que no homem os instintos estão quase apagados, pois o homem não vive, em definitivo, de seus instintos, já que se governa mediante outras faculdades como a reflexão e a vontade, que reatuam sobre os instintos. A prova disso é que alguns homens preferem morrer a viver, e, seja lá por que motivo, anulam em si esse suposto instinto de conservação.

É, portanto, falha a explicação pelo instinto. Com ele ou sem ele concluímos sempre que o homem sobrevive porque quer e isto é o que despertava em nós uma curiosidade talvez impertinente. Por que normalmente quer o homem viver? Por que não lhe é indiferente desaparecer? Que empenho tem em estar no mundo?

Vamos agora entrever a resposta. Basta-nos, ao menos por hoje, com partir do fato bruto: que o homem quer viver e, porque quer viver, quando o frio ameaça com destruí-lo, o homem sente a necessidade de evitar o frio e proporcionar-se calor. O relâmpago da tempestade invernal acende um ponto do bosque: o homem então se aproxima ao fogo benéfico que o acaso lhe proporcionou para esquentar-se. Esquentar-se é um ato pelo qual o homem atende a sua necessidade de evitar o frio, aproveitando sem mais o fogo que encontra pela frente. Digo isto com o sobressalto com que se diz sempre um truísmo. Contudo, nos convém — logo os senhores irão ver — esta humildade inicial que nos identifica com Calino. O importante é que não resulte que além de dizer truísmos os dizemos sem entendê-los. Isso seria o cúmulo, um cúmulo que com grande frequência praticamos. Anote-se, pois, que esquentar-se é a operação com a qual procuramos receber sobre nós um calor que já está aí, que encontramos — e que essa operação se reduz a exercer uma atividade com que o homem se encontra dotado evidentemente: a de poder caminhar e assim aproximar-se ao fogo que aquece. Outras vezes o calor não provém de um incêndio, porquanto o homem, transido de frio, se refugia numa caverna que encontra em sua paisagem.

Outra necessidade do homem é alimentar-se, e alimentar-se é colher o fruto da árvore e comê-lo, ou então a raiz mastigável ou ainda o animal que cai sob sua mão. Outra necessidade é beber, etc.

Ora, a satisfação destas necessidades costuma impor outra necessidade: a de deslocar-se, caminhar, isto é, suprimir as distâncias, e como às vezes importa que esta supressão se faça em bem pouco tempo, necessita o homem suprimir tempo, encurtá-lo, ganhá-lo. O inverso acontece quando um inimigo — a fera ou outro homem — põe em perigo sua vida. Necessita fugir, isto é, lograr no menor tempo a maior distância. Seguindo por este modo chegaríamos, com um pouco de paciência, a definir um sistema de necessidades com o qual o homem se encontra. Esquentar-se, alimentar-se, caminhar, etc., são um repertório de atividades que o homem possui, evidentemente, com o qual se encontra da mesma forma como se encontra com as necessidades delas decorrentes.

Com ser tudo isto tão óbvio que — repito — encabula um pouco enunciá-lo, convém reparar na significação que aqui tem o termo necessidade. Que quer dizer que o esquentar-se, alimentar-se, caminhar são necessidades do homem? Sem dúvida que são elas condições naturalmente necessárias para viver. O homem reconhece esta necessidade material ou objetiva e porque a reconhece a sente subjetivamente como necessidade. Mas note-se que esta sua necessidade é puramente condicional. A pedra solta no ar cai necessariamente, com necessidade categórica ou incondicional. Mas o homem pode perfeitamente não alimentar-se, como agora o Mahâtma Gandhi. Não é, pois, o alimentar-se necessário por si, é necessário para viver. Terá, pois, tanto de necessidade quanto seja necessário viver se se há de viver. Este viver é, pois, a necessidade originária de que todas as demais são meras consequências. Ora, já indicamos que o homem vive porque quer. A necessidade de viver não lhe é imposta à força, como lhe é imposto à matéria não poder aniquilar-se. A vida — necessidade das necessidades — é necessária apenas num sentido subjetivo; simplesmente porque o homem decide autocraticamente viver. É a necessidade criada por um ato de vontade, ato cujo sentido e origem prosseguiremos olhando de viés e de que partimos como de um fato bruto. Seja lá por que razão, acontece que o homem costuma ter um grande empenho em sobreviver, em estar no mundo, apesar de ser o único ente conhecido que tem a faculdade — ontológica ou metafisicamente tão estranha, tão paradoxal, tão conturbada — de poder aniquilar-se e deixar de estar aí, no mundo.

E, pelo visto, esse empenho é tão grande que quando o homem não pode satisfazer as necessidades inerentes a sua vida, porque a natureza ao derredor não lhe propicia os meios inescusáveis, o homem não se resigna. Se, por falta de incêndio ou de caverna, não pode exercer a atividade ou fazer de esquentar-se, ou por falta de frutos, raízes, animais, a de alimentar-se, o homem põe em movimento uma segunda linha de atividades: faz fogo, faz um edifício, faz agricultura ou caçada. É o caso que aquele repertório de necessidades e o de atividades que as satisfazem diretamente, aproveitando os meios que estão já aí quando estão, são comuns ao homem e ao animal. A única coisa da qual não podemos estar certos é de se o animal tem o mesmo empenho que o homem em viver. Dir-se-á que é imprudente e até injusta esta dúvida. Por que o animal há de ter menos apego à vida que o homem? O que ocorre é que não tem os dotes intelectuais do homem para defender sua vida. Tudo isto é provavelmente bastante discreto, mas uma consideração um pouco cautelosa, que se atem aos fatos, encontra-se irrefragavelmente com que o animal, quando não pode exercer a atividade de seu repertório elemental para satisfazer uma necessidade — por exemplo, quando não há fogo nem caverna — não faz nada mais e se deixa morrer. O homem, ao contrário, dispara um novo tipo de fazer que consiste em produzir o que não estava aí na natureza, seja porque em absoluto não esteja, seja porque não está quando faz falta. Natureza não significa aqui senão o que rodeia ao homem, a circunstância. Assim faz fogo quando não há fogo, faz uma caverna, isto é, um edifício, quando não existe na paisagem, monta um cavalo ou fabrica um automóvel para suprimir espaço e tempo. Ora, note-se que fazer fogo é um fazer bem diverso de esquentar-se, que cultivar um campo é um fazer bem diverso de alimentar-se, e que fazer um automóvel não é correr. Agora começa a ver-se por que tivemos que insistir na truística definição de esquentar-se, alimentar-se e deslocar-se.

Aquecimento, agricultura e fabricação de carros ou automóveis não são, pois, atos em que satisfazemos nossas necessidades, já que, ao contrário, implicam uma supressão daquele repertório primitivo de fazeres em que diretamente procuramos satisfazê-las. Em suma, a esta satisfação e não a outra coisa se encaminha este segundo repertório, mas — ei-lo! — supõe ele uma capacidade que é precisamente o que falta ao animal. Não é tanto inteligência o que lhe falta — sobre isto falaremos um pouco, se houver tempo — como o ser capaz de desprender-se transitoriamente dessas urgências vitais, desgrudar-se delas e ficar-disponível para ocupar-se em atividades que, por si, não são satisfação de necessidades. O animal, pelo contrário, está sempre e indefectivelmente preso a elas. Sua existência não é mais que o sistema dessas necessidades elementares que chamamos orgânicas ou biológicas e o sistema de atos que as satisfazem. O ser do animal coincide com esse duplo sistema ou, dito em outras palavras, o animal não é mais que isso. Vida, no sentido biológico ou orgânico da palavra, é isso. E eu pergunto: tem sentido, referindo-se a um tal ser, falar de necessidades? Porque, lembro aos senhores, que, referido este conceito de necessidade ao homem, consistia nas condições sine quibus non com que o homem se encontra para viver. Elas, pois, não são sua vida ou, dito ao contrário, sua vida não coincide, pelo menos totalmente, com o perfil de suas necessidades orgânicas. Se coincidisse, como acontece no animal, se seu ser consistisse estritamente e só em comer, beber, esquentar-se, etc., não as sentiria como necessidades, isto é, como imposições que, de fora, chegam a seu autêntico ser, com que este não tem outro remédio senão contar, mas que não o constituem . Carece, pois, de bom-senso supor que o animal tem necessidades no sentido subjetivo que a este termo corresponde referido ao homem. O animal sente fome, mas como não tem outra coisa que fazer senão sentir fome e tratar de comer, não pode sentir tudo isto como uma necessidade, como alguma coisa com que é preciso contar, que não há outro remédio senão fazer e que lhe é imposto. Ao contrário, se o homem conseguisse não ter essas necessidades e, consequentemente, não ter que ocupar-se em satisfazê-las, ainda lhe restaria muito que fazer, muito âmbito de vida, precisamente as tarefas (quehaceres) e a vida que ele considera como o mais seu. Precisamente porque não sente o esquentar-se e o comer como o seu, como aquilo em que sua verdadeira vida consiste e de outro lado não tem outro remédio senão aceitá-lo, é pelo que se lhe apresenta com o caráter específico de necessidade, de inevitabilidade. E isso, inesperadamente, nos descobre a constituição estranhíssima do homem: enquanto todos os demais seres coincidem com suas condições objetivas — com a natureza ou circunstância — o homem não coincide com esta, já que é alguma coisa alheia e distinta de sua circunstância; mas não tendo outro remédio, se quer ser e estar nela, tem que aceitar as condições que esta lhe impõe. Daí que se lhe apresentem com um aspecto negativo, forçado e penoso.

Por outro lado, isto esclarece ura pouco que o homem possa desentender-se provisoriamente dessas necessidades, as suspenda ou contenha e, distanciado delas, possa transladar-se para outras ocupações que não são sua imediata satisfação.

O animal não pode retirar-se de seu repertório de atos naturais, da natureza, porque não é senão ela e não teria, ao distanciar-se dela onde meter-se. Mas o homem, pelo visto, não é sua circunstância, já que está somente submerso nela e pode em alguns momentos sair dela e pôr-se em si, recolher-se, ensimesmar-se, e só Consegue ocupar-se em coisas que não são direta e imediatamente atender aos imperativos ou necessidades de sua circunstância. Nestes momentos extra ou sobrenaturais de ensimesmamento e retração em si inventa e executa esse segundo repertório de atos: faz fogo, faz uma casa, cultiva o campo e monta o automóvel.

Notemos que todos estes atos têm uma estrutura comum. Todos eles pressupõem e levam em si a invenção de um procedimento que nos permite, dentro de certos limites, obter com segurança, a nosso ver e conveniências, o que não existe na natureza, mas que necessitamos. Não importa, pois, que na circunstância, aqui e agora, não haja fogo. Fazemo-lo, isto é, executamos aqui e agora um certo esquema de atos que previamente havíamos inventado de uma vez para sempre. Este procedimento consiste amiúde na criação de um objeto cujo simples funcionamento nos proporciona isso que carecemos, o instrumento ou aparelho. Tais são os dois palitos e a isca com que o homem primitivo faz fogo ou a casa que levanta e o separa do extremo frio ambiente.

De onde resulta que estes atos modificam ou reformam a circunstância ou natureza, conseguindo que nela haja o que não há — seja que não existe aqui e agora quando se necessita, seja que em absoluto não existe. Pois bem, estes são os atos técnicos, específicos do homem. O conjunto deles é a técnica, que podemos, desde logo, definir como a reforma que o homem impõe à natureza em vista da satisfação de suas necessidades. Estas, vimos, eram imposições da natureza ao homem. O homem responde impondo por sua vez uma mudança à natureza. É, pois, a técnica, a reação enérgica contra a natureza ou circunstância que leva a criar entre esta e o homem uma nova natureza posta sobre aquela, uma sobrenatureza. Anote-se, portanto: a técnica não é o que o homem faz para satisfazer suas necessidades. Esta expressão é equívoca e valeria também para o repertório biológico dos atos animais. A técnica é a reforma da natureza, dessa natureza que nos faz necessitados e indigentes, reforma em sentido tal que as necessidades ficam, a ser possível, anuladas por deixar de ser problema sua satisfação. Se sempre que sentimos frio a natureza automaticamente pusesse à nossa disposição fogo, é evidente que não sentiríamos a necessidade de esquentar-nos, como normalmente não sentimos a necessidade de respirar, já que simplesmente respiramos sem ser-nos isso problema algum. Pois isso faz a técnica, precisamente isso: pôr-nos o calor junto à sensação de frio e anular praticamente esta enquanto necessidade, indigência, negação, problema e angústia.

Fica aqui esta primeira e tosca aproximação à pergunta: Que é a técnica? Mas, agora, uma vez obtida essa aproximação, é quando começam a complicar-se as coisas e a comportar-se um tanto divertidas, como veremos nas próximas lições.

ORTEGA Y GASSET, JOSÉ. Meditação da Técnica. Tradução: Luis Washington Vita. Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, 1963.