VII O TIPO “GENTLEMAN”. — SUAS EXIGÊNCIAS TÉCNICAS. — O “GENTLEMAN” E O “HIDALGO”
Mas, que é ser gentleman? O caminho mais rápido para compreendê-lo — já que necessitamos poupar ao extremo o número de palavras — se nos oferece se, exagerando as coisas, dizemos: o comportamento que o homem costuma adotar durante os breves momentos em que as trabalheiras e apertos da vida deixam de afligi-lo e se dedica, para distrair-se, a um jogo aplicado ao resto da vida, isto é, ao sério, ao penoso da vida; isso é o gentleman. Aqui se vê também em forma cortante, pelo paradoxal, em que sentido o programa vital é extranatural. Porque os jogos e os modos de comportamento que neles regem são pura invenção diante do tipo de vida que a natureza dá por si. Aqui, ainda dentro da própria vida humana, invertem-se os termos e se propõe que o homem seja em sua existência forçada, de luta com o meio, conforme se encontra no recanto irreal e puramente inventado de seus jogos e desportos.
Ora, quando o homem se dedica a brincar costuma ser porque se sente seguro no que concerne às urgências elementares do viver. O jogo é um luxo vital e supõe prévio domínio sobre as zonas inferiores da existência, que estas não oprimem, que o ânimo, sentindo-se supérfluo de meios, se mova em tão ampla margem de serenidade, de calma, sem o atordoamento e feio atropelar-se a que leva uma vida escassa, em que tudo é terrível problema. Um ânimo assim se compraz em sua própria elasticidade e se dá o luxo de jogar limpo, o fair play de ser justo, de defender seus direitos, mas respeitando os do próximo, de não mentir. Mentir no jogo é falsificar o jogo, e, portanto, não jogar. Mesmo assim, o jogo é um esforço, mas que não sendo provocado pelo premente utilitarismo que inspira o esforço imposto por uma circunstância do trabalho, vai repousando em si mesmo sem esse desassossego que infiltra no trabalho a necessidade de conseguir a todo custo seu fim.
Daí as maneiras de gentleman: seu espírito de justiça, sua veracidade, o pleno domínio de si fundado no prévio domínio do que lhe rodeia, a clara consciência do que é seu direito pessoal diante dos demais e dos demais diante dele; isto é, de seus deveres. Para ele não tem sentido a trapaça. O que se faz é preciso fazê-lo bem ê não preocupar-se demais. O produto industrial inglês se caracteriza por estas qualidades: é tudo nele bom, sólido, acabado, a matéria-prima e a mão-de-obra. Não está feito para vendê-lo de qualquer jeito, é o contrário da pacotilha. É sabido que o fabricante inglês não se amoldava, como depois o alemão, aos gostos e caprichosas exigências dos clientes, mas, ao contrário, esperava com grande pachorra a que o cliente se acomodasse a seu produto. Não fazia quase propaganda, que é sempre falsidade, jogo sujo e retórica. O bom pano na arca se vende. E o mesmo em política: nada de frases, farsas, provocação vil de contágios demagógicos — nada de intolerância — poucas leis, porque a lei uma vez escrita se converte no império de puras palavras, que, como não se podem literalmente cumprir, obriga à indecência governamental que falseia sua própria lei. Um povo de gentleman não necessita constituição; por isso, em rigor, a Inglaterra vem se comportando perfeitamente bem sem ela, etc.
Como se vê, o gentleman, em oposição ao bodhisatva, quer viver com intensidade neste mundo e ser o mais indivíduo que possa, centrar-se em si mesmo e nutrir-se de uma sensação de independência diante de tudo e de todos. No céu não tem sentido ser gentleman, porque ali a própria existência seria efetivamente a delícia de um jogo, e o gentleman ao que aspira é ser um bom jogador na aspereza mundanal, no mais rude da rude realidade. Daí que o elemento principal e, por assim dizer, a atmosfera do ser gentleman reside numa sensação básica de vital folgança, de domínio superabundante sobre a circunstância. Se esta afoga, não é possível educar-se para a gentlemanerie. Por isto, este homem que aspira a fazer da existência um jogo e um desporto é o contrário de um iluso; precisamente porque quer isso sabe que a vida é coisa dura, séria e difícil. Por isso se ocupará a fundo em assegurar-se esse domínio sobre a circunstância — domínio sobre a matéria — e sobre os homens. Daí ter sido o grande técnico e o grande político. Seu afã de ser indivíduo e de dar a seu. destino mundanal a graça de um jogo lhe fez sentir a necessidade de separar-se até fisicamente dos demais e das coisas e atender ao cuidado de seu corpo enobrecendo suas funções mais humildes.
O asseio, a mudança de camisa, o banho — desde os romanos, no Ocidente, ninguém se lavava — serão coisas que o gentleman pratica com grande formalidade. Seja-me perdoado lembrar que o water-closet nos vem da Inglaterra. Um homem de módulo bastante intelectual jamais teria ideado o water-closet, pois desprezava seu corpo. O gentleman, repito, não é intelectual. Busca o decoram em toda sua vida: alma limpa e corpo limpo.
Mas, está claro, tudo isto supõe riqueza; o ideal do gentleman levou, com efeito, a criar uma enorme riqueza e, ao mesmo tempo, a supôs. Suas virtudes somente podem respirar e abrir suas asas numa ampla margem de poderio econômico. E, efetivamente, não se conseguiu de fato o tipo de gentleman até meados do século último, quando o inglês gozava de uma riqueza formidável. O operário inglês pode, em alguma medida, ser gentleman porque ganha mais que o burguês médio de outros países.
Seria de grande interesse que alguém bem dotado e que de antigo possua intimidade com as coisas inglesas se ocupasse de estudar qual é o estado em que hoje se encontra o sistema de normas vitais que chamamos gentleman. Nos últimos vinte anos a situação econômica do homem inglês mudou: hoje é muito menos rico que no começo do século. Cabe ser pobre e, “não obstante”, ser inglês? Podem subsistir suas virtudes características num âmbito de escassez?
Ouvi que precisamente nas classes superiores inglesas se nota a decadência do tipo gentleman, coincidindo com o descenso das técnicas específicas do homem britânico e com a atroz míngua das fortunas aristocráticas. Mas não garanto ao leitor a exatidão destas notícias. A incapacidade para perceber com precisão os fenômenos sociais que padecem ainda as pessoas na aparência mais inteligentes é incalculável.
Seja como for, é preciso ir pensando num tipo exemplar de vida que conserve o melhor do gentleman e seja, ao mesmo tempo, compatível com a pobreza que inexoravelmente ameaça a nosso planeta. Nos ensaios mentais que para construir essa nova figura execute o leitor surgirá inevitavelmente, como termo de comparação, outro perfil histórico, em alguns traços o mais próximo ao gentleman e que, não obstante, leva em si a condição de florescer em terra de pobreza. Refiro-me ao “hidalgo”. Sua diferença mais grave do gentleman consiste em que o hidalgo não trabalha, reduz ao extremo suas necessidades materiais e, em consequência, não cria técnicas. Vive alojado na miséria como essas plantas do deserto que sabem vegetar sem umidade. Mas é não menos indiscutível que soube dar a essas terríveis condições de existência uma solução digna. Pela dimensão de dignidade se enlaça com o gentleman, seu irmão mais afortunado.