AS COISAS E SEU “SER”. — A PRÉ-COISA. — O HOMEM, O ANIMAL E OS INSTRUMENTOS. — A EVOLUÇÃO DA TÉCNICA

Gastei este pouco de tempo em desenvolver, ainda que brevissimamente, os anteriores exemplos, movido pelo desejo de que não ficasse abstrato e confuso na mente dos senhores o que seja esse programa, esse ser extranatural do homem, em realizar o que consiste nossa vida e, por outro lado, mostrar, ainda que seja bastante vagamente, certa funcionalidade entre o volume ou direção da técnica e o modo de ser homem que se escolheu. Claro está que todo este problema da vida, do ser do homem, tem uma última dimensão estritamente filosófica, que eu procurei evitar neste ensaio. Urgia-me nele sublinhar aqueles supostos ou implicações que o fato da técnica contém e que costumam passar desapercebidos, não obstante constituir o mais essencial na essência da técnica. Porque uma coisa é, antes de tudo, a série de condições que a fazem possível — Kant dizia “condições de sua possibilidade” e, mais sóbria e claramente, Leibniz seus “ingredientes”, seus “requisitos”. E é curioso observar que de ordinário esses mais autênticos ingredientes ou requisitos de uma coisa são os que nos passam inadvertidos, os que deixamos de lado, como se não fossem o que são: o ser mais profundo da coisa. Com quase toda segurança alguns dos senhores, que pertencem a um tipo de ouvintes cuja psicologia não quero fazer agora, para os quais ouvir é ir buscar o que eles já sabem, seja pormenorizadamente, seja em vaga aproximação, ao invés de, ao contrário, já que decidiram ouvir, abrir-se sem mais ao que venha, quanto mais imprevisto, melhor; esses, digo, terão pensado: Bem, mas isso não é a técnica, eu não vejo aí a técnica em sua realidade, que é funcionando. Não se adverte que, com efeito, para responder à pergunta: Que é tal coisa?, o que fazemos é desfazê-la, precisamente recorrer de sua forma, tal e como está aí funcionando, a seus ingredientes, que procuramos isolar e definir. E está claro que, solto, cada um dos ingredientes não é a coisa: esta é o resultado de seus ingredientes, e para que esteja aí funcionando é preciso que os ingredientes desapareçam de nossa vista como tais e soltos. Para que vejamos água é preciso que desapareçam diante de nós o hidrogênio e o oxigênio. A definição de uma coisa, ao enumerar seus ingredientes, seus supostos, o que ela implica se há-de ser, se converte, portanto, em alguma coisa assim como a pré-coisa. Pois essa pré-coisa é o ser da coisa, e é o que é preciso buscar, porque esta já está aí: não é preciso buscá-la. Ao contrário, o ser e a definição, a pré-coisa, nos mostra a coisa em statu nascendi, e somente se conhece bem o que, num e noutro sentido, se vê nascer.

Os supostos por mim sublinhados até aqui não são, certamente, os únicos, mas são os mais fundamentais; e por isso mesmo os mais ocultos e, em consequência, os que costumam passar mais desapercebidos.

Ao contrário, a toda gente lhe ocorre perceber que se o homem não tivesse inteligência capaz de descobrir novas relações entre as coisas que o rodeiam, não inventaria instrumentos nem métodos vantajosos para satisfazer suas necessidades . Pelo fato disto ser óbvio, não urgia dizê-lo. É tão óbvio que se passa por ele e se chega a um erro: em acreditar que quando um ente possui uma certa espécie de atividade basta o fato de que a possui para explicar que a exercite . Apesar de que com bastante frequência observamos homens que têm olhos para ver e que, não obstante, não veem o que lhes passa pela frente, graças, simplesmente, a que estão absortos meditando alguma coisa. Ainda que possam ver, não veem; não exercem esta atividade, pois não lhes interessa o que acontece diante deles e, ao contrário, interessa-lhes o que ocorre em seu íntimo. Existem aqueles que têm talento para matemáticas, mas não o exercem porque não lhes interessa.

Não basta, pois, poder fazer alguma coisa para que o façamos, nem basta que o homem possua inteligência técnica para que a técnica exista. A inteligência técnica é uma capacidade, mas a técnica é o exercício efetivo dessa capacidade, que perfeitamente podia ficar em disponibilidade. E a questão importante não é apontar se o homem tem tal ou qual atitude para a técnica, senão por que se dá o fato desta, e isso somente se faz inteligível quando se descobre que o homem, queira ou não, tem que ser técnico, sejam melhores ou piores seus dotes para isso. E isso é o que procurei fazer nas lições anteriores.

É bastante óbvio, repito, falar da inteligência enquanto se fala da técnica, e com excessiva celeridade atribuir àquela a distância entre o homem e o animal. Não se pode hoje com a mesma tranquila convicção que há um século definir ao homem como faz Franklin, chamando-o animal instrumentificum, animal tools making. Não somente nos famosos estudos de Köhler sobre os chimpanzés, mas em outras muitas províncias da psicologia animal aparece mais ou menos problematicamente a capacidade do animal para produzir instrumentos elementares. O importante em todas estas observações é notar que a inteligência estritamente requerida para a invenção do instrumento parece existir nele. A insuficiência, o que com efeito faz impossível ao animal chegar com eficaz plenitude à posse do instrumento não está, pois, na inteligência sensu stricto, mas em outro lado de sua condição. Assim Köhler mostra que o essencialmente defeituoso do chimpanzé é a memória, sua incapacidade de conservar o que pouco antes lhe ocorrera e, consequentemente, a escassíssima matéria que oferece à sua inteligência para a combinação criadora.

Contudo, a diferença decisiva entre o animal e o homem não está tanto na primária que se encontra comparando seus mecanismos psíquicos, mas nos resultados que esta diferença primária traz consigo e que dão à existência animal uma estrutura completamente distinta da humana. Se o animal tem pouca imaginação será incapaz de formar-se um projeto de vida distinto da mera reiteração do que fez até o momento. Basta isto para diferenciar radicalmente a realidade vital de um e de outro ente. Mas se a vida não é realização de um projeto, a inteligência se converte numa função puramente mecânica, sem disciplina nem orientação. Olvida-se demasiado que a inteligência, por mais vigorosa que seja, não pode tirar de si mesma sua própria direção; não pode, portanto, chegar a verdadeiros descobrimentos técnicos. Ela, por si, não sabe quais, entre as infinitas coisas que se podem “inventar”, convém preferir, e se perde em suas infinitas possibilidades. Somente numa entidade onde a inteligência funciona a serviço de uma imaginação, não técnica, mas criadora de projetos vitais, pode constituir-se a capacidade técnica.

O dito até aqui, entre suas múltiplas intenções, levava uma: a de reagir contra uma tendência, tão espontânea como excessiva, reinante em nosso tempo, em crer que, afinal de contas, não há verdadeiramente senão uma técnica, a atual euro-norte-americana, e que todo o resto foi somente torpe rudimento e balbuciação para ela. Eu necessitava contra-restar esta tendência e submergir a técnica atual como uma de tantas no panorama vastíssimo e multiforme das humanas técnicas, relativizando assim seu sentido e mostrando como a cada projeto e módulo de humanidade corresponde a sua. Mas, uma vez feito isto, está claro que necessito destacar o que a técnica atual tem de peculiar, o que nela dá lugar precisamente a essa miragem que, com algum viso de verdade, no-la apresenta como a técnica por antonomásia. Por muitas razões, com efeito, a técnica chegou hoje a uma colocação no sistema de fatores integrantes da vida humana que jamais tivera. A importância que sempre lhe correspondeu, mesmo aparte dos raciocínios em que procurei demonstrá-la, transpareceria sem mais no simples fato de que, quando o historiador toma ante seus olhos vastos âmbitos de tempo, encontra-se com que não pode dominá-los se não é aludindo à peculiaridade de sua técnica. A idade mais primitiva da humanidade, que incertamente, como entre duas luzes, consegue entrever-se, se chama a idade aurorai da pedra ou eolítica — depois é a idade da pedra velha e impoluta, paleolítica, a idade do bronze, etc. Pois bem, não seria fora de propósito situar nessa lista nosso tempo, qualificando-o como a idade, não desta ou de outra técnica, mas simplesmente da “técnica” como tal. Que aconteceu na evolução da capacidade técnica do homem para que chegue a uma época em que, apesar de ter sido ele sempre técnico, mereça com alguma congruência ser fichada formalmente pela técnica? Evidentemente, isto não pôde acontecer senão porque a relação entre o homem e a técnica se elevou a uma potência peculiarissima que convém precisar, e essa elevação, por sua vez, somente pôde produzir-se porque a própria função técnica se tenha modificado em algum sentido bastante substancial.

Para aquilatarmos, pois, o que é nossa técnica, convém de plano destacar sua peculiar silhueta sobre o fundo de todo o passado técnico do homem; em suma, convém desenhar, ainda que seja sumarissimamente, as grandes mudanças que a própria função técnica sofreu ou, dito ainda com outras palavras, seria oportuno definir os grandes estádios na evolução da técnica. Deste modo, fazendo alguns cortes no passado ou pulando alguns elos, esse pretérito confuso adquirirá perspectiva e movimento; deixar-nos-á ver de onde, de que formas veio vindo e para onde, a que formas foi chegando a técnica.

ORTEGA Y GASSET, JOSÉ. Meditação da Técnica. Tradução: Luis Washington Vita. Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, 1963.

Ortega y Gasset