R. Descartes, Discurso do Método, trad. de Newton de Macedo, pp. 34-40.
Não sei se deva falar-vos das primeiras meditações que nele1 fiz; porque são tão metafísicas e tão pouco vulgares, que não agradarão talvez a toda a gente. E, todavia, vejo-me de certo modo obrigado a falar-vos delas, para que se possa avaliar se os fundamentos que escolhi são bastante firmes. De há muito tinha notado que, pelo que respeita à conduta, é necessário algumas vezes seguir como indubitáveis opiniões que sabemos serem muito incertas, como já atrás foi dito. Mas, agora que resolvera dedicar-me apenas à descoberta da verdade, pensei que era necessário proceder exatamente ao contrário, e rejeitar, como absolutamente falso, tudo aquilo em que pudesse imaginar a menor dúvida, a fim de ver se, após isso, não ficaria qualquer coisa nas minhas opiniões que fosse inteiramente indubitável.
Assim, porque os nossos sentidos nos enganam algumas vezes, eu quis supor que nada há que seja tal como eles o fazem imaginar. E porque há homens que se enganam ao raciocinar, até nos mais simples temas de geometria, e neles cometem paralogismos, rejeitei como falsas, visto estar sujeito a enganar-me como qualquer outro, todas as razões de que até então me servira nas demonstrações. Finalmente, considerando que os pensamentos que temos quando acordados nos podem ocorrer também quando dormimos, sem que neste caso nenhum seja verdadeiro, resolvi supor que tudo o que até então encontrara acolhimento no meu espírito não era mais verdadeiro que as ilusões dos meus sonhos. Mas, logo em seguida, notei que, enquanto assim queria pensar que tudo era falso, eu, que assim o pensava, necessariamente era alguma coisa. E notando que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as extravagantes suposições dos cépticos seriam impotentes para a abalar, julguei que a podia aceitar, sem escrúpulo, para primeiro princípio da filosofia que procurava.
No pais (a Holanda) aludido em parágrafo anterior. ↩