Stiegler1994

“O Homem e a Matéria” expõe os princípios de uma “tecnomorfologia fundada nas matérias-primas”, segundo uma abordagem que estuda os povos ditos primitivos, disseminados pelo globo, alguns não tendo mantido praticamente nenhuma relação com os outros, sobre os quais se dispõe apenas de uma documentação restrita, não histórica (trata-se de povos “sem escrita”), e onde a técnica é muito menos complexa que nas épocas históricas.

A etnoantropologia de Leroi-Gourhan repousa sobre uma interpretação do fenômeno técnico, que para ele é a característica primeira do fenômeno humano, e pela qual os povos se distinguem mais essencialmente que por seus caracteres raciais e culturais no sentido espiritualista desse termo. Ela visa dois objetivos: fornecer a teoria de uma antropogênese que coincide amplamente, como veremos em sua dimensão paleoantropológica que estudaremos em nossa segunda parte, com uma tecnogênese; permitir compreender a partir daí os fenômenos de diferenciação cultural entre as etnias.

Introduzindo o conceito de tendência (inspirado numa leitura de Bergson a quem ele por vezes se refere), Leroi-Gourhan interpreta esse fenômeno técnico e legitima seu projeto de tecnomorfologia comparando a tarefa do antropólogo com as do botânico e do zoólogo entre os séculos XVII e XIX: essas duas disciplinas puderam elaborar seus princípios taxonômicos — que se mostraram definitivos desde então — enquanto “a maioria das espécies permanecia por descobrir”. Do mesmo modo, a antropologia, há dois terços de século, “se deu classificações, dividiu raças, técnicas, povos, e a experiência demonstra a cada nova expedição a solidez de certas velhas concepções. Isso se deve, em zoologia como em etnologia, ao caráter permanente das tendências”. E ele acrescenta, introduzindo um conceito de linha — ou de filum — lembrando o de linhagem tecnológica, assim como a questão da escolha, ou seja, da determinação, já encontrados em Gille:

“Tudo se passa como se um protótipo ideal de peixe ou de sílex talhado se desenvolvesse segundo linhas previsíveis do peixe ao anfíbio, ao réptil, ao mamífero ou à ave, do sílex indiferenciado em sua forma ao cinzel de pedra polida, à faca de cobre, ao sabre de aço. Que não nos enganemos, essas linhas revelam apenas um aspecto da vida, o da escolha inevitável e limitada que o meio propõe à matéria viva.”

Essa aproximação entre os fatos tecnológicos e os fatos zoológicos, entre objeto técnico e ser vivo, é decisiva para as hipóteses que se seguirão. A explicação do fenômeno técnico analisará como um caso particular da zoologia as relações que se estabelecem entre a matéria viva que é o homem e a matéria inerte que é a “matéria-prima” na qual aparecem as formas técnicas. Leroi-Gourhan integra um determinismo quase biológico que não existe em Gille, mas onde, também aqui, as “vias da invenção são estreitas”: “Porque deve escolher entre a água e o ar, entre a natação, a reptação ou a corrida, o ser vivo segue um número limitado de grandes linhas de evolução.” A mesma limitação, o mesmo princípio de moldagem e inscrição do vivo nas condições estabelecidas pela matéria inerte do meio determinará a forma das ferramentas. A textura da madeira impõe as formas das lâminas e os encabamentos, e o determinismo técnico é tão marcado quanto o da zoologia: como Cuvier descobrindo uma mandíbula de gambá num bloco de gesso pôde convidar seus colegas incrédulos a prosseguir com ele o desmonte do esqueleto e lhes predizer a revelação dos ossos marsupiais, a etnologia pode, até certo ponto, deduzir da forma de uma lâmina de ferramenta previsões sobre a do cabo e sobre o uso da ferramenta completa.

A evolução técnica resulta de um acoplamento do homem e da matéria que se trata de elucidar e a sistematicidade técnica se enraíza aqui num determinismo “zootecnológico”: pelo próprio caráter zoológico de um dos termos da relação, a saber o homem, o fenômeno deve ser interpretado desde as perspectivas da história da vida, embora os resultados em que consistem os objetos técnicos sejam de matéria inorgânica, pois inerte, ainda que organizada; compreende-se desde então a necessidade de engajar uma reflexão sobre o sentido da organização da matéria em geral em sua relação com o organismo, mas também sobre o que se chama órgão, quer designe a parte do organismo ou o órganon enquanto instrumento técnico. A investigação procederá por analogia com os métodos da zoologia — permanecendo toda a questão de saber até onde vai essa analogia.

 

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André Leroi-Gourhan, Bernard Stiegler