Leroi-Gourhan (Geste Parole) – O utensílio desligado da mão

A antropologia física vem em socorro da antropologia cultural mostrando que a característica específica do homem e do utensílio é distanciar. O determinismo de um e, sobretudo, os determinismos socioculturais, seguem uma evolução que, pela sua natureza, não pode ser parcialmente distanciada pelo determinismo do outro. A espécie zoológica «homo sapiens» não segue o preciso destino da família do utensílio. Esse facto explica, provavelmente, que nas nossas sociedades técnicas o enorme progresso da técnica apenas seja acompanhado por um desenvolvimento fisiológico imperceptível (pequeno prolongamento da média de vida) e que, e acima de tudo, não pareça alargado com um aperfeiçoamento moral ou jurídico.

Esse afastamento que se exprime na separação do utensílio relativamente à mão ou na separação da palavra relativamente ao objecto, vem também a exprimisse na distanciação que a sociedade assume relativamente ao grupo zoológico. (…)

O valor humano do gesto não está, pois, na mão, cuja condição suficiente se resume a estar livre durante a marcha, mas sim, precisamente, nessa mesma marcha vertical e nas suas consequências paleontológicas sobre o desenvolvimento do aparelho cerebral. O enriquecimento progressivo da sensibilidade táctil e do dispositivo neuromotor intervém qualitativamente sem alterar a natureza da aparelhagem fundamental.

Ao nível do antropídeo primitivo, as complexas acções de preensão, de manipulação e de moldagem vêm a persistir; e continuam ainda a representar uma grande parte dos nossos gestos técnicos. Em contrapartida, torna-se sensível que, após o aparecimento do percutor, do «chopper» e do uso das hastes de cervídeo, as operações de seccionamento, de trituração, de modelagem, de raspagem e de escava, acabam por emigrar para os utensílios. A mão deixa de ser utensílio para se tornar motor. (…)

No decurso da evolução humana, a mão vem a enriquecer os seus modos de acção no âmbito do processo operatório. A acção manipuladora dos primatas, na qual gesto e utensílio se confundem, é seguida, com o surgimento dos primeiros antropídeos, pela acção da mão em motricidade directa, na qual o utensílio manual já se tornou separável do gesto motor. Na etapa seguinte, ultrapassada talvez antes do neolítico, as máquinas manuais anexam o gesto, pelo que a mão em motricidade indirecta se limita agora a fornecer o impulso motor. No decurso dos tempos históricos, a própria força motriz vem a abandonar o braço humano, limitando-se a mão a desencadear o processo motor nas máquinas animais ou nas máquinas automotoras, como é o caso dos moinhos. Finalmente, no último estádio, a mão passa a desencadear um processo programado em máquinas automáticas, máquinas que não só exteriorizam o utensílio, o gesto e a motricidade, como começam também a invadir o domínio da memória e do comportamento maquinal.

Este empenhamento do utensílio e do gesto em órgãos exteriores ao homem tem todas as características de uma evolução biológica, já que se desenvolve no tempo, tal como a evolução cerebral, por adição de elementos que permitem aperfeiçoar o processo operatório sem se eliminarem uns aos outros. Já vimos mais atrás que o cérebro do homo sapiens conserva todos os níveis atingidos desde o peixe, além de que todos eles, apesar de suplantados pelo nível mais recente, continuam a desempenhar o seu papel nas formas mais elevadas do pensamento. Do mesmo modo, a existência e o funcionamento de uma máquina automática dotada de um programa complexo obriga a que, aos diversos níveis do seu fabrico, ajustamento e reparação, todas as categorias do gesto técnico, ainda que num plano de penumbra, venham a intervir, indo desde a manipulação do metal ao manejo da lima, à bobinagem dos fios eléctricos, à reunião mais ou menos manual ou mecânica das peças.

(A. Leroi-Gourhan, Le Geste et la Parole, t. II, Albin Michel, 1964, pp. 33, 41-42.)