Vimos como o estádio de evolução técnica em que hoje nos achamos se caracteriza: 1.° Pelo fabuloso crescimento de atos e resultados técnicos que integram a vida atual. Enquanto na Idade Média, na época do artesão, a técnica e a naturalidade do homem pareciam compensar-se e a equação de condições em que a existência se apoiava lhe permitia beneficiar-se do dom humano para adaptar o mundo ao homem, mas sem que isso levasse a desnaturalizar-lhe, hoje os supostos técnicos da vida superam gravemente os naturais, de sorte tal que materialmente o homem não pode viver sem a técnica a que chegou. Isto não é um modo de dizer, mas significa uma verdade literal. Num de meus livros destaquei, como um dos dados que o homem contemporâneo deve manter mais vivazes em sua mente, o fato seguinte: a Europa, desde o século V até 1800 — portanto, em treze séculos — não consegue chegar a mais de 180 milhões de habitantes. Pois bem, de 1800 à hora presente [1933] portanto em pouco mais de um século, atingiu a cifra de uns 500 milhões de homens, sem contar os milhões que centrifugou a emigração. Em um só século cresceu, pois, três vezes e meia. E é evidente que quaisquer que sejam as causas adjacentes de tão prodigioso fenômeno — o fato de que hoje possam viver bem três vezes e meia mais de homens no mesmo espaço em que antes mal viviam três vezes e meia menos — a causa imediata e o suposto menos eludível é a perfeição da técnica. Se esta retrocedesse subitamente, centenas de milhões de homens deixariam de existir.
A proliferação sem par da planta humana acontecida nesse século é provavelmente a origem de não poucos conflitos atuais. Fato tal somente podia acontecer quando o homem havia chegado a interpor entre a natureza e ele uma zona de pura criação técnica tão espessa e profunda que acabou por constituir uma sobrenatureza. O homem de hoje — não me refiro ao indivíduo, mas à totalidade dos homens — não pode escolher entre viver na natureza ou beneficiar essa sobrenatureza. Está já irremediavelmente preso a esta e colocado nela como o homem primitivo em seu contorno natural. E isto tem um risco dentre outros: como ao abrir os olhos à existência se encontra o homem rodeado de uma quantidade fabulosa de objetos e procedimentos criados pela técnica que formam uma primeira paisagem artificial tão espessa que oculta a natureza primária atrás dele, tenderá a acreditar que, como esta, tudo aquilo está aí por si mesmo: que o automóvel e a aspirina não são coisas que é preciso fabricar, mas coisas, como a pedra e a planta, que são dadas ao homem sem prévio esforço deste. Isto é, que pode chegar a perder a consciência da técnica e das condições, por exemplo, morais em que esta se produz, voltando, como o primitivo, a não ver nelas senão dons naturais que se têm desde logo e não reclamam esforçada manutenção. De modo que a expansão prodigiosa da técnica a fez primeiro destacar-se sobre o sóbrio repertório de nossas atividades naturais e nos permitiu adquirir plena consciência dela, mas depois, ao prosseguir nesta fantástica progressão, seu crescimento ameaça com obnubilar essa consciência.
2.° O outro traço que leva ao homem a descobrir o caráter genuíno de sua própria técnica foi, dissemos, o trânsito do mero instrumento à máquina, isto é, ao mecanismo que atua por si mesmo. A máquina abandona em última instância o homem, o artesão. Não é já o utensílio que auxilia ao homem, mas ao contrário: o homem fica reduzido a auxiliar da máquina. Uma fábrica é hoje um artefato independente ao qual ajudam em alguns momentos uns poucos homens, cujo papel resulta modestíssimo.
3.° Consequência disso foi que o técnico e o operário, unidos no artesão, se separassem, e ao ficar isolados se convertesse o técnico como tal na expressão pura, vivente, da técnica como tal: em suma, o engenheiro.
Hoje está a técnica diante de nossos olhos, tal e como é, eximida, aparte e sem confundir-se e ocultar-se no que não é ela. Por isso se dedicam concretamente a ela certos homens, os técnicos. Na Idade paleolítica ou na Idade Média, o inventar não podia constituir um ofício porque o homem ignorava seu próprio poder de invenção . Hoje, pelo contrário, o técnico se dedica, como à atividade mais normal e preestabelecida, à faina de inventar. Ao contrário do primitivo, antes de inventar sabe que pode inventar; isto equivale a que antes de ter uma técnica tem a técnica. Até este ponto e mesmo no sentido quase material é certo o que venho sustentando: que as técnicas são somente concreções a posteriori da função geral técnica do homem. O técnico não tem que esperar os acasos e submeter-se a cifras evanescentes de probabilidade, já que, em princípio, está certo de chegar a descobrimentos. Por quê?
Isto nos obriga a falar um pouco do tecnicismo da técnica.
Para alguns isso e somente isso é a técnica. E, sem dúvida, não existe técnica sem tecnicismo, mas não é somente isso. O tecnicismo é somente o método intelectual que opera na criação técnica. Sem ele não existe técnica, mas apenas com ele também não existe. Já vimos que não basta possuir uma faculdade para que, sem mais, a exerçamos.
Eu desejaria falar demorada e amplamente sobre o tecnicismo da técnica, tanto da atual como da pretérita. É talvez o tema que pessoalmente me interessa mais. Mas teria sido um erro, a meu ver, fazer gravitar para ele todo este ensaio. Agora, em sua agonia, tenho de reduzir-me a dedicar-lhe uma brevíssima consideração: brevíssima, mas, segundo espero, suficientemente clara.
É indiscutível que nem a técnica teria conseguido tão fabulosa expansão nestes últimos séculos, nem ao instrumento houvera sucedido a máquina, nem, consequentemente, o técnico ter-se-ia separado do operário se o tecnicismo não houvesse previamente sofrido uma fundamental transformação.
Com efeito, o tecnicismo moderno é completamente distinto daquele que atuou em todas as técnicas pretéritas. Como exprimir em poucas palavras a fundamental diferença? Talvez fazendo-nos esta outra pergunta: o técnico do passado, quando o era propriamente, isto é, quando o invento não surgia por puro acaso, porquanto era deliberadamente buscado, que é o que fazia? Ponhamos um exemplo esquemático, portanto, exagerado, ainda que se trata de um fato histórico e não imaginário. O arquiteto nilota necessitava elevar os silhares de pedra às partes mais altas da pirâmide de Cheops. O técnico egípcio parte, evidentemente, do resultado que se propõe : elevar o silhar. Para isso busca meios. Para isso, eu disse; ou seja, busca meios para o resultado — que a pedra fique no alto — tomando em bloco esse resultado. Sua mente está prisioneira da finalidade proposta tal e como é proposta em sua integridade última e perfeita. Tenderá, pois, a não buscar como meios senão aqueles atos ou procedimentos que, em ser possível, produzam de um só golpe, com uma só operação breve ou prolongada, mas de tipo único, o resultado total. A unidade indiferenciada do fim incita a buscar um método também único e indiferenciado. Isto leva nos inícios da técnica a que meio pelo qual se faz a coisa se pareça muito à própria coisa que se faz. Assim na pirâmide: para subir a pedra ao alto se adova à pirâmide terra em forma de pirâmide; com base mais larga e menor declive sobre o qual se arrastam para a cúspide os silhares. Como este princípio de similitude — similia similibus — não é aplicável em muitos casos, o técnico fica sem regra alguma, sem método para passar mentalmente do fim proposto ao meio adequado, e se dedica empiricamente a provar isto e aquilo e o acolá que vagamente se ofereça como congruente ao propósito. Dentro, pois, do círculo que se refere a este propósito, recai na mesma atitude do “inventor primitivo”.