Benjamin – A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica (a fotografia)

Walter Benjamin – A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica

A controvérsia travada no decurso do século XIX, entre a pintura e a fotografia relativamente ao valor artístico dos seus produtos, parece hoje dúbia e confusa. Mas isto não invalida o seu significado, podendo mesmo sublinhá-lo. De facto, essa controvérsia foi expressão de uma transformação na história mundial, de que nenhum dos intervenientes teve consciência. Na medida em que a era da reprodutibilidade técnica da arte a desligou dos seus fundamentos de culto, extinguiu para sempre a aparência da sua autonomia. Mas a alteração da função da arte, que com isso se verificou, deixou de existir na perspectiva do século. O mesmo sucedeu no século XX, que assistiu evolução do cinema.

Já se tinha dedicado muita reflexão vã à questão de saber se a fotografia seria uma arte – sem se ter questionado o facto de, através da invenção da fotografia, se ter alterado o carácter global da arte – e, logo a seguir, os teóricos do cinema sucumbiram ao mesmo erro. Mas as dificuldades que a fotografia tinha levantado relativamente à estética tradicional, eram uma brincadeira de crianças comparadas com as que foram provocadas pelo cinema. Daí a violência cega que caracteriza a teoria do cinema nos seus primórdios. Assim, Abel Gance, por exemplo, compara o filme com o hieróglifo: “Eis como, em consequência de um retrocesso altamente curioso, regressamos ao nível de expressão dos Egípcios… A linguagem das imagens ainda não atingiu a sua maturidade porque os nossos olhos ainda não evoluíram o suficiente. Ainda não existe suficiente respeito, culto por aquilo que elas exprimem.”1 Ou, Séverin-Mars escreve: “A que arte estava reservado um sonho, que… fosse, em simultâneo, poético e real! Considerado de tal ponto de vista, o cinema representaria um meio de expressão absolutamente incomparável e, na sua atmosfera, só poderiam mover-se pessoas de pensamento muito nobre, em momentos de total perfeição e mistério do trajeto da sua vida.”2 Por seu lado, Alexandre Arnoux conclui uma fantasia sobre o cinema mudo com a seguinte pergunta: “Não deveriam todas as ousadas descrições de que aqui nos servimos tender para a definição de oração?”3 É muito instrutivo observar como o esforço de atribuir o filme à “arte” força estes teóricos, sem qualquer pejo, a reconhecer nele elementos de culto. E, no entanto, na época em que se publicavam tais especulações, já existiam obras como “L’opinion publique” ou “La ruée vers l´or”?. Isso não impede Abel Gance de estabelecer paralelos com os hieróglifos, e Séverin-Mars de falar de filmes, corno se poderia falar de quadros de Fra Angelico. É significativo que, ainda hoje, autores particularmente reacionários procurem um significado do filme mesma direção, senão no sagrado, pelo menos no sobrenatural. A propósito da versão em filme, de Reinhardt, do Sonho de Uma Noite de Verão, Werfel comenta que, indubitavelmente, era a cópia estéril do mundo exterior, com as suas ruas, interiores, estações de caminho de ferro, restaurantes, automóveis e estâncias balneárias, que tinha impedido, até então, o cinema de atingir o império da arte.

“O filme ainda não apreendeu o seu verdadeiro sentido, suas verdadeiras possibilidades… estas consistem na sua faculdade única de, com meios naturais e um poder de persuasão incomparável, expressar a ambiência do conto de fadas, do maravilhoso, o sobrenatural.”4


  1. Abel Gance, op. cit, págs. 100/101. 

  2. Citado por Abel Gance, op. cit, pág. 100. 

  3. Alexandre Arnoux; Cinéma. Paris 1929, pag. 28. 

  4. Franz Werfel: “Sonho de Uma Noite de Verão”. Um filme de Shakespeare e Reinhardt. “Neues Wiener Journal”, cit. Lu, 15 de Novembro 1935.