Marías – A condição humana, segundo Francis Bacon

De Sapientia Veterum, XXVI: Prometheus

Pensavam os antigos que a formação e a constituição do homem era a obra mais própria da Divindade, a mais digna dela, e é a única que atribuíram à divina Providência; opinião que tem por base duas verdades incontestáveis. Em primeiro lugar, a natureza humana (o homem) está em parte composta de um espírito e de um entendimento, que é a sede própria da providência (da previsão); seria absurdo e incrível supor que elementos brutos tenham podido ser o princípio de uma razão e uma inteligência; pelo que é mister concluir que a providência da alma humana tem como modelo, princípio e fim uma Providência suprema. Em segundo lugar, o homem é como o centro do mundo, pelo menos quanto às causas finais, pois se o homem pudesse ser suprimido do Universo, todo o resto nada mais faria senão errar vagamente e flutuar no espaço sem objeto nem fim; em uma palavra, para servir-me de uma expressão recebida e inclusive trivial, o mundo nada mais seria que uma espécie de vassoura desfeita e cujas palhas se dispersariam por falta de um fio que as atasse. Com efeito, tudo parece destinado e subordinado ao homem, pois só ele sabe tornar tudo apropriado e de tudo tirar partido. Os movimentos periódicos e as revoluções dos astros servem-lhe para distinguir e medir os tempos ou para determinar a situação dos lugares. Os meteoros proporcionam-lhes prognósticos para prever as estações, a temperatura ou outros meteoros. Os ventos propiciam-lhe uma força motriz para a navegação, para os moinhos e para infinidade de outras máquinas; as plantas e os animais de todas as espécies, materiais para o alojamento e o vestiário, alimentos, remédios, instrumentos e meios para facilitar, abreviar e aperfeiçoar todos seus trabalhos; em uma palavra, uma infinidade de coisas necessárias, cômodas ou agradáveis, de sorte que todos os seres que o rodeiam parecem esquecer-se de si mesmos e trabalhar só para ele. E não é por acaso que o poeta, inventor desta ficção, acrescente que, naquela massa destinada a formar o homem, Prometeu misturou e combinou com o barro partículas tiradas de diferentes animais. Com efeito, de todos os entes que o universo encerra em sua imensidão, não há nenhum mais composto e mais heterogêneo que o homem. Assim, não sem razão o qualificaram os antigos de mundo pequeno, de microcosmo, considerando-o como um resumo do mundo inteiro. Apesar dos químicos que abusaram desta palavra microcosmo, tendo alterado sua significação por tomá-la literalmente, haverem destruído toda sua elegância e toda sua verdadeira força, quando afirmaram que todos os minerais e todos os vegetais, ou substâncias muito análogas, se encontram no corpo humano, este ridículo exagero não destrói de modo algum o que acabamos de dizer, e não por isso é menos certo que, de todos os corpos conhecidos, é o que apresenta uma mescla maior e mais substâncias diferentes e partes distintas;, complicação à qual é natural atribuir as propriedades e as admiráveis faculdades de que está dotado, pois os corpos muito simples só têm um número pequeníssimo de forças ou de propriedades, cujo efeito é rápido e seguro, porque não se acham compensadas por outras que possam debilitá-las e atenuá-las, como ocorre nos corpos mais compostos. Porém, a multidão das propriedades e a excelência das faculdades dependem da composição e de uma diversidade maior nas partes constitutivas. No entanto, em sua origem, o homem parece estar nu e inerme; durante muito tempo não pode valer-se a si mesmo; é carente de tudo. Por isto Prometeu apressou-se a roubar o fogo do céu, que é tão necessário ao homem para satisfazer a maioria de suas necessidades ou de seus caprichos. Porque se a alma pode chamar-se a forma por excelência, e a mão o primeiro de todos os instrumentos, pode-se considerar o fogo como o mais poderoso de todos os auxílios e o mais eficaz de todos os recursos.