Na tentativa de melhor elucidar as etapas do processo em que, simultaneamente, se dá a constituição do objeto técnico (prático ou teórico) e a instituição do “eu”, Abellio propõe uma análise da percepção. A exemplo do que fez Merleau-Ponty (1945) na Fenomenologia da Percepção, Abellio recupera o significado da percepção na identificação de uma estrutura fenomenológica de forte repercussão. Através da análise da percepção evidencia-se também a importância do “corpo”.
Na atitude natural, me vejo simplesmente confrontado ao mundo, face a face com ele. Vejo tal objeto, um livro, por exemplo, posto sobre a minha mesa, e a visão não vai além desta relação simples: este livro e eu, o par: objeto percebido e o sujeito “percebente”. No entanto, é preciso que examinemos mais de perto o desenrolar desta percepção. Sigamos o percurso proposto por Abellio:
- primeiro, o mundo deve ativar para mim um objeto até então passivo; não cabe aqui um debate sobre a primazia do mundo ou do corpo na percepção, ou seja, quem dispara a percepção; trata-se de um debate semelhante aquele que tenta descobrir quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha; o fato é que uma espécie de corrente se estabelece entre o mundo e o objeto que se destaca dele; o livro que vejo é um objeto do mundo, e para que seja visível, deve se destacar de alguma maneira sobre um fundo mais ou menos distinto; este fundo, o mundo enquanto suporte de todos os objetos, não recai sobre a minha visão, mas é o horizonte que a torna efetiva, a sustenta;
Figura 1 – Estrutura da percepção
- segundo, Abellio imagina que um objeto qualquer, se destacando do mundo, ou sendo recortado do mundo, se torna por conseguinte ativo em relação a este último, que, por sua vez, se torna passivo; o mundo se mantém assim enquanto fundo mais ou menos indistinto, verdadeiro suporte unitário e global dos objetos; ou seja, condição a priori da emergência deste mesmo objeto; neste sentido, é que o mundo se apresenta como “pano de fundo”, horizonte de objetividade, não “visível” em si, mas que assegura, por sua vez, a visão do objeto …
- objeto se destacando, tomando sentido (um jogo de palavras que indica tanto o fato do objeto ganhar presença nos órgãos de sensação, como também significado), rejeitando uma certa indistinção, com o resto do mundo, estabelece com este último, no entanto, uma primeira relação ou “razão” do tipo Objeto/Mundo; pode-se mesmo dizer que tal objeto se tornou ativo em relação ao resto do mundo, considerado então passivo; existe assim, e sempre existirá, uma dualidade forma-fundo do lado do percebido…
- esta mesma dualidade também se instala do lado daquele que percebe, o sujeito; um ou mais órgãos dos sentidos (visão, audição, tato etc.) se abrem e se tornam ativos, se destacando do fundo passivo, em repouso, do corpo; no exemplo do livro sobre a mesa, é preciso que minha vista, que enxerga o livro e se interessa especialmente nele, se abra e se torne ativa (+), sobre o fundo posto em repouso de meu corpo; este se torna passivo (-) e suas demais funções se fundem no fluxo de uma certa indistinção; em nossa figura, uma rotação tem lugar, do objeto para a vista, ou seja, um sentido se cria;
- a vista se tornando ativa, acolhe o objeto, mas o fato capital é que, sob a excitação da vista, uma corrente se estabelece da vista (+) para o corpo inteiro (-); o corpo, anteriormente feito passivo pela abertura da vista, se torna ativo, mas a um grau de atividade maior do que antes do inicio da percepção; do lado do sujeito, forma-se assim uma segunda relação ou “razão” do tipo Sentido/Corpo, em interação com a primeira relação Objeto/Mundo…
- meu olhar deu o objeto ao corpo e meu corpo inteiro se apropria do objeto, o tornando um instrumento ou ferramenta; esta apropriação deve ser entendida como uma intensificação do objeto; em outros termos, meus sentidos, por seu poder discriminador, têm por missão distinguir, enfocando os objetos do mundo, mas meu corpo inteiro tem por missão, por seu poder integrador, reintegrar em si, sob a forma de instrumentos ou ferramentas, estes objetos distintos, e de assim se abrir a um novo modo do mundo; com referencia a figura, por uma segunda rotação, em sentido inverso da primeira, o corpo, novamente ativo, como no inicio da percepção, fecha o circulo se voltando para o mundo feito então passivo; o corpo, graças aos novos poderes, devidos ao instrumento ou ferramenta incorporado, vai animar mais uma vez o mundo, que volta a se tornar ativo, promovendo um novo ciclo, com novas emergências de objetos…
- tanto o objeto, quanto a vista são, em outros termos, emergências locais de uma realidade global, que devem vir a ser “re-enraizadas” ou arriscam voltar a se dissolver no mundo e no corpo, respectivamente;
- a constituição comum de objeto e de sujeito, através dessa análise da percepção, indica que, do lado do objeto, temos uma relação ou razão Obeto/Mundo e, do lado do sujeito, outra razão Sentido/Corpo; estas razões se associam então na forma de uma proporção que as combina da seguinte forma: Objeto/Mundo = Sentido/Corpo; assim, como já havia reconhecido Husserl, a colocação em relação de dois termos ou de dois polos, e somente dois, como sujeito e objeto, é uma noção ingênua, pois não há polos ou termos que sejam estáveis na gênese do “eu”; uma relação deste gênero oculta na verdade a emergência de uma proporção, ou seja, de um ciclo de relações, como na figura acima (Estrutura da percepção), levando à multiplicação, à intensificação e à transmutação dos polos ou dos termos…
- essa proporção não é fechada nem estável, e seus termos não são fixos; é um proporção não isolável, tomada e levada em um movimento dialético; pelo esquema da figura, como lembra Abellio, é possível notar que o processo de percepção “crucifica” o “eu”, a cada ciclo, no espaço-tempo; o que importa, no entanto, é compreender bem o sentido da passagem do termo à razão ou relação, enquanto acoplamento de termos, e da razão à proporção, enquanto acoplamento de razões; não importa aqui discutir quem comanda toda a operação, mundo ou pessoa.
Como dito anteriormente, alguns dos movimentos indicados na Figura 1 se identificam com as etapas do processo de gênese do “eu”; assim sendo, primeiro temos a relação mundo ativo e objeto ainda passivo (representado na Figura 1 pelo eixo mundo-objeto, ainda sem a corrente – a seta – do mundo para o objeto), ou seja, as “águas indiferenciadas” como ponto de partida, de onde os objetos se ativam por uma inversão de polaridade com o mundo. Assim os objetos se destacam de um mundo, que ainda predomina como “águas indiferenciadas”, é a etapa da “Concepção” do “eu”; um “eu” apenas capaz de percepção em potência (“eu” ainda indiferenciado, comungando das “águas indiferenciadas”).
A etapa em que o objeto feito ativo em relação ao mundo, é acolhido pela vista ainda passiva, é o “Nascimento” do “eu”, e da percepção. O “eu” ainda é pouco diferenciado, mas o corpo e os sentidos, em contato com o mundo, fazem-no “vir ao mundo”. Nesta etapa, pela Figura 1, se dá uma “rotação” pela qual o objeto é tomado pela vista, ou outro sentido qualquer, que pode ou não se interessar pelo objeto, ou seja, pode deixá-lo na indeterminação do mundo, ou recolhê-lo e efetivamente tomá-lo, ao se tornar um sentido ativo em relação ao corpo, feito então passivo.
Enfim, a partir da incorporação do objeto, enquanto ferramenta ou instrumento, para novas reapropriações do mundo, ou seja, da universalização do objeto-utilitário, temos o “Batismo” do “eu”. O corpo atinge assim a plena realização da percepção, em conjunção com outras atividades cognitivas e afetivas. A etapa seguinte, “Comunhão”, representa a reiteração do corpo com o mundo, mas de um corpo ora estendido pelo instrumento ou ferramenta, assim comungando com um novo modo de mundo.