Certamente não foi Regis Débray1 o primeiro a enunciar a ideia original do necessário estudo do meio2. Podemos, no entanto, dizer que Débray soube desenvolver, a partir desta e de outras ideias correlatas, os princípios que iriam inaugurar uma disciplina dedicada ao estudo do meio, a chamada midiologia, segundo uma nova perspectiva.
Construída a partir de diferentes horizontes do saber, a midiologia ocupa-se dos signos em sentido amplo, e não restrito como na linguística; ocupa-se de todos os vestígios sensíveis a uma intenção de sentido. Diferente da semiologia, enfoca o poder dos signos, e não apenas o sentido. Visa ir além do enfoque da pragmática e da comunicação, ir além das relações cara-a-cara e da intersubjetividade. Busca ser alguma coisa similar a uma pragmática do pensamento, na história lenta e longa das sociedades, onde as mensagens se vestem de palavras, gestos, figuras e imagens, ou seja, toda panóplia de formas de arquivamento do signo.
Em resumo, trata-se de uma disciplina que trata das funções sociais superiores, em suas relações com as estruturas técnicas de transmissão. Podemos defini-la como o estudo das relações entre fatos de comunicação e de poder, ou da influência complexa de uma inovação técnica sobre um movimento intelectual. Seu objeto é o estudo das vias e meios de eficácia simbólica; “o estudo do sistema de constrangimentos materiais e condutores técnicos graças aos quais a informação circula”34. Em lugar de formular a questão “este pensamento é o produto de quê?”, propõe-se uma nova: “o que é que este pensamento produziu efetivamente?”.
Para Débray, o texto como unidade ideal é menos pertinente do que o livro como objeto, que por sua vez é menos pertinente que suas metamorfoses. Objetos e obras de qualquer natureza, contam menos que as operações; o campo da midiologia é o intermediário ou o campo intercalar, onde o que importa são justamente os intervalos, os intercessores, as interfaces de transmissão. O meio de encaminhamento de uma mensagem, no sentido de McLuhan (“o meio é a mensagem”), é um elemento de análise limitado para a midiologia, pois não passa do andar térreo do edifício de compreensão que pretende construir.
Portanto, segundo Débray, descrever o desenvolvimento de uma filosofia em não-filosofia, de um discurso em não-discurso, requer mais do que se acomodar na descrição da episteme subjacente a este ou aquele campo enunciador, levantar fenômenos mais obscuros e triviais de encaminhamento, difusão e propagação; não se trata de decifrar o mundo dos signos, mas compreender o processo pelo qual os signos tornam-se mundo.
Nesse sentido, a proposta de Débray parece manter uma relação bastante significativa com a geografia, como reconhece Milton Santos em seu último livro. Uma relação significativa, é claro, na medida que se possa estabelecer, caso a caso, correlações, se possível verificáveis, entre as atividades simbólicas de um grupo humano, suas formas de organização, inclusive espaciais, e seu modo de coleta, arquivamento e circulação de vestígios.
As produções simbólicas de uma sociedade no instante T não podem ser explicadas independentemente das tecnologias da memória, ou, em termos mais gerais, da inteligência, utilizada no mesmo instante e no mesmo lugar. Isso quer dizer que uma dinâmica do pensamento é inseparável de uma física dos vestígios, expressa também em uma ordem espaço-temporal, como nos lembra Debray.
Dessa forma, as questões ditas, até bem pouco tempo, ideológicas, seriam melhor qualificadas como simbólicas ou culturais, pois trabalham o corpo da sociedade, por sua gravidade e organicidade. Ideologia, em vez de palavra-armadilha, antítese do saber, inversão especular do real, seria melhor compreendida como o meio de uma organização (inclusive espacial), de uma incorporação, de uma encarnação coletiva.
Para a midiologia, o meio pode ser entendido em quatro sentidos: primeiro, como, procedimento geral de simbolização; segundo, como código social de comunicação; terceiro, como, suporte material de inscrição e estocagem; e, quarto, como dispositivo de gravação conectado a determinada rede de difusão. A mediação determina, portanto, a natureza da mensagem, de modo que existe primazia da relação sobre o ser.
Em uma acepção bastante vizinha, talvez como eco do conceito transversal de meio, fala-se em Sociologia de “campo”, em Geografia de “ambiente”, de “ecossistema”, de “biotopo”, de “território”, até mesmo de “redes” (tão em moda, ultimamente). De acordo com a midiologia, em cada um destes casos, o meio, ou seu eco, é complementar ao assunto considerado, ou ao objeto de estudo: é aquilo sem o qual este não teria explicação, nem a menor chance de sequer existir.
No entanto, como afirma Bougnoux5, essa explicação não é linear nem mecânica; o ser e o meio parecem deter cada um a metade de um programa, como as mensagens rasgadas dos romances de espionagem; e não é fácil delimitar o círculo fechado que formam entre si: se o meio M age sobre o indivíduo I, este, em troca, modifica M e o co-produz.”.
Não podemos entender essa interação dinâmica como uma influência do tipo estímulo-resposta. A psicologia da forma (gestalt) já havia feito sobressair com bastante ênfase, que é próprio da natureza do ser vivo selecionar, até mesmo fazer seu meio. O Umwelt ou o mundo circundante percebido por um organismo, e pertinente a ele, resulta de uma retenção bastante seletiva: sobre o conjunto virtual dos fenômenos disponíveis, o indivíduo apenas retém o que faz sentido para ele.
Dito de outra maneira, o meio não age por pressão mecanicista, mas por excitações que fazem sentido, deixando ao organismo certa margem de interpretação, de eleição, de tempo, de resposta, enfim de liberdade. Quanto mais complexo for o nível de organização de um indivíduo, mais seletivo será, e menos numerosos serão os acontecimentos suscetíveis de alterá-lo diretamente. Como já afirmava Vidal de La Blache: “o meio propõe, o ser vivo dispõe – e inversamente”6.
Portanto, na interação do ser com o respectivo meio, é impossível, a priori, separar o que é rumor, informação pertinente, mensagem e contexto, de tal forma essas noções são relativas à configuração de cada um. De nosso meio, apenas conhecemos o que permite nosso confinamento cognitivo, organizacional e informacional. Nossa mais louca especulação permanece coextensiva a nossas ações e não sai do raio, nicho, ou clareira bastante extensa na aparência, que nosso organismo cava no mundo circundante, sem que nos apercebamos do restante. Os seres parecem se mover em universos compartimentados.
O meio tem um estatuto ontológico desconcertante, é capaz de situar indivíduos, mas escapa, em primeira análise, à sua própria individuação, à sua identidade estável no espaço e no tempo, à simples decomposição oposicionista ser-meio, ao princípio linear da causalidade. Pascal explorou a riqueza desse conceito equívoco em seus Pensamentos: “Desproporção do homem, […] um meio entre nada e tudo” (II, 72).
DEBRAY, Regis (1993), Curso de Midiologia Geral. Petrópolis, Vozes; DEBRAY, Regis (1995), Manifestos Midiológicos. Petrópolis, Vozes; DEBRAY, Régis (1997), Transmettre. Paris, Odile Jacob. ↩
Para o geógrafo Augustin Berque, já no século XIX, se enunciava uma tentativa de ciência do “meio”, através do que se denominou de “mesologia”, instaurada por Louis-Adolphe Bertillon (1821-1883). A mesologia pretendia ser uma síntese do que chamamos hoje de ecologia e sociologia, pois tendia para uma fenomenologia do “meio” físico, em associação com uma teoria da imitação (mimesis) quanto ao “meio” social. [Berque, 1990] ↩
“O midiólogo não considera o pensamento como já elaborado, espontâneo ou disponível de antemão, mas como adaptação sonambúlica a essas redes às quais responde na medida em que se ajusta a elas”. [Bougnoux, 1994]. ↩
BOUGNOUX, Daniel (1994), Introdução às Ciências da Informação e da Comunicação. Petrópolis, Vozes. ↩
Idem ↩
Idem ↩