de Castro – A informática sob a ótica das causas aristotélicas

Mas retomemos, de novo, o nosso caminho de reflexão sobre o que é a informática, sob a ótica das causas aristotélicas, interpretadas como metáforas sobre a imagem da bola de cristal. Reconhecemos um elemento decisivo no “dar-se da informática”, o contexto imediato. Este contexto ganha expressão e sentido, com a menor distorção possível, a partir da interação da pessoa com a bola, ou de sua elevação e de seu posicionamento adequado em relação à pessoa. Assim também a adequação da informática às pessoas, busca o posicionamento ideal de reflexão ótima das pessoas e de seus contextos sobre o engenho de representação que utilizam.

Esta reflexão, promovida por cada pessoa e seu contexto imediato, a nível individual, sobre computadores interligados em rede, cria o chamado mundo virtual, compartilhado por todos, com ares de mundo real, onde aqueles que participam têm a ilusão de compartir informações, conhecimento, experiências e até vivências. Este “espaço social” se assenta sobre o chamado ciberespaço. Mas esta é uma outra história…

O contexto imediato se reflete sobre a bola, em conformidade com suas disposições, recebendo dela a configuração que o qualifica como causa materialis da imagem refletida sobre a bola. Ou seja, submisso às condições de refração e outras disposições da [[:node/774|bola de cristal]], o contexto imediato, também segundo suas próprias disposições, se espelha sobre a superfície da bola, constituindo a imagem refletida sobre a bola.

Do mesmo modo, no “dar-se da informática”, o contexto imediato da pessoa que “dirige” este “dar-se”, se projeta sobre o engenho, como causa materialis, segundo as disposições próprias do contexto e segundo as disposições e dispositivos próprios do engenho. Neste sentido podemos dizer que o contexto imediato, como causa materialis, é configurado, por sua vez, pela causa formalis, definida de modo metafórico na imagem pelas próprias propriedades da bola, entre as quais sua rotundidade e suas propriedades de reflexão, em outras palavras por suas “disposições e dispositivos”; exatamente como no caso do engenho se “refletem” os elementos pessoa, problema e contexto, sob a luz do meio.

É assim que a linguagem de programação e as características técnicas do equipamento, constituintes do computador, determinam a conformação dos dados que nele são registrados e as possibilidades de tratamento destes dados, segundo a funcionalidade prevista em um “dar-se da informática”, pela “reflexão” dos elementos contexto e problema através da interação pessoa-engenho de representação. Vale notar que as “disposições e dispositivos” constituintes do engenho, segundo sua constituição a priori, ordenam e limitam o poder e as possibilidade de arregimentação da pessoa, enquanto causa efficiens. O que nos leva de novo a questão: com “o que” a pessoa divide ou “a que” concede este papel de causa efficiens?

Como se pode vislumbrar, embutida nesta imagem de Escher, se apresentam inúmeras metáforas, umas dentro de outras, como se fossem bonecas russas. Retomando, por exemplo, o próprio reflexo sobre a bola de vidro, podemos também interpretar o reflexo da pessoa na bola, como uma possível metáfora da “figura” de seu saber, espelhado segundo as propriedades técnicas da bola ou codificado segundo as disposições e dispositivos do engenho de representação e do meio, enquanto respectivamente causa materialis, causa formalis e causa finalis.

Por outro lado, não podemos esquecer que um reflexo implica primeiro em uma superfície de reflexão, que, de acordo com sua capacidade de reflexão e sua forma, ordena e determina a conformação deste reflexo, do mesmo modo que a causa formalis atua como princípio configurador. Ao mesmo tempo, qualquer reflexo é propiciado também por uma luz que, no caso da imagem, parece atravessar a janela ao fundo, por trás da pessoa conforme indicado pela imagem refletida sobre a bola, e assim vem garantir toda esta reflexão que falamos. Luz, por sua vez, que ilumina e colore todo o quadro da imagem, e pode ser entendida como uma possível metáfora do contexto mais amplo, ou seja, do ambiente social, político, cultural, econômico, técnico e científico, ou do meio técnico-científico-informacional que abarca, sem ser diretamente visto, toda o quadro; e certamente também responde à metafísica de nossa época, como diria Heidegger.

Esta luz que dá visibilidade e colorido a tudo, ou seja, a todo o quadro contendo contexto, pessoa, bola e imagem refletida sobre a bola, pode ser interpretada como o que evidencia e legitima a seu modo, a própria bola. De que serviria uma bola de cristal sem a luz que a faz refletir? Da mesma maneira, o meio técnico-científico-informacional evidencia e legitima o engenho de representação e um “dar-se da informática”.

Como mencionamos, toda a imagem, refletida sobre a bola de cristal sofre uma distorção, ou uma conformação à bola de cristal. Com efeito, qualquer uso do computador implica em conformação às “disposições e dispositivos” que o constituem. Esta conformação pode ser minimizada, mas nunca eliminada, pelo esforço justo de posicionamento da bola em relação à pessoa, ao contexto imediato e ao contexto amplo, de onde emana a luz que penetra pela janela ao fundo (meio). Esforço este sempre ditado pelo estatuto do computador e do meio que o justifica.

Esse esforço, consoante o meio, por sua vez revela, em parte, um outro elemento significativo no “dar-se da informática”, o problema que orientou sua constituição em primeiro lugar. Ou seja, a perspectiva de adoção do computador em uma situação iluminada pela causa finalis. Este problema se apresenta à montante do “dar-se da informática”, em consonância com a problemática, que leva a pessoa a usar um computador para solucionar este problema. Isto, na medida que considera todo e qualquer problema como passível de uma leitura em termos de um problema de natureza informacional e comunicacional.

Ao longo da aplicação e uso do engenho, o problema se apresenta, por sua vez, transfigurado em desafio metodológico e técnico na constituição do “dar-se da informática”. Este desafio toma conta e enreda a pessoa de tal maneira que ela sucumbe toda e qualquer reflexão sobre “o que” está fazendo ou constituindo, à exigência de decidir e responder, a todo momento, a questões de tipo “como” fazer para implementar a solução do problema, em termos informacionais e comunicacionais. O engenho de representação, como solução informatizada do problema, configura até mesmo “o que” é preciso pensar e decidir e o “como” pensar e decidir de acordo com a linguagem do computador, a estrutura e organização dos dados simbólicos, etc.

Por fim, à jusante da constituição do “dar-se da informática”, o problema se apresenta em termos de tentativas de conciliação dos resultados obtidos por este “dar-se”, ou seja, em termos de conciliação desta constituição em si mesmo com o discurso que deve enquadrá-los. Sob a luz do meio isto se dá de maneira facilitada, e até mesmo garantida. Os resultados obtidos se conformam a produção intelectual geral, na medida que a informatização avança e se universaliza o “discurso do método informacional”. Os discursos se conciliam sobre um método único, tendo como eixo norteador “o discurso do método informacional”. As divergências são aparentes já que os fundamentos são os mesmos.

Através dessa breve análise, sobre algumas das possíveis metáforas oferecidas pela litogravura do Escher, revelaram-se alguns elementos co-responsáveis na constituição de um “dar-se da informática”. Ao todo, identificamos: o computador ou o engenho, enquanto causa formalis da constituição de um “dar-se da informática”; a projeção da pessoa e de seu contexto imediato sobre o engenho, em conformidade com suas “disposições e seus dispositivos”, como causa materialis; o meio que a tudo “ilumina” e determina inclusive a problematização de questões diversas sob o modo informacional e comunicacional, e que assim dirige a adoção do computador e “informa” a constituição de um “dar-se da informática”, atuando como causa finalis; e, a pessoa submissa a esta interação “criativa” com o engenho, enquanto causa efficiens, que teoricamente arregimentaria as demais causas que respondem pela constituição de um “dar-se da informática”.

A problemática que, em grande parte, emana da luz do meio, e assim dita a configuração e as “cores” do problema, reflete integralmente a causa finalis. Ela deve ser bem analisada, pois guarda em si a justificativa da proposta do computador enquanto engenho de representação, re-velando de certa maneira o meio. Ela pode também oferecer indícios das modalidades de atualização das virtualidades do computador em um específico “dar-se da informática”, constituído através da coalescência com os outros elementos, já identificados.

Poderíamos mesmo dizer, que a causa finalis explica, como deveria mesmo, a razão de ser do computador, enquanto tecnologia da informação, ou, como se usa dizer, instrumento para resolução de um problema, sempre enquadrado sob a perspectiva de algo de natureza informacional e comunicacional. Este é um dos riscos maiores da constituição de um “dar-se da informática”, a partir de um engenho de representação informacional/comunicacional: sua própria razão de ser se arvora sempre como razão de ser da informática constituída. Ou seja, o problema transfigurado por uma problemática de natureza informacional e comunicacional, iluminado pelo meio, em conformidade com soluções técnicas preteritamente definidas em configurações computacionais, orienta a constituição de qualquer “dar-se da informática”, limitando sobremaneira a atuação da causa efficiens, e promovendo as demais causas sob sua égide.

Aqui nos aproximamos de uma possível resposta a questão que ficou em aberto até agora: “o que” compartilha e até predomina enquanto causa efficiens, na constituição de um “dar-se da informática”? Não sendo a pessoa que detém plenos poderes no exercício desta responsabilidade, este algo mais, deve ser assumido pelas demais causas. Considerando que a teoria aristotélica das quatro causas, conforme interpretada por Heidegger, permanece válida na abordagem da técnica, só nos resta conceder as demais causas uma co-responsabilidade diferenciada e superior à causa efficiens.

Na constituição de um “dar-se da informática”, o computador, como causa formalis, aporta mais do que simples forma. A linguagem e a configuração técnica do computador, podem ser responsabilizadas pela arregimentação dos demais elementos, inclusive a pessoa. Ela não só deve conhecer esta linguagem, mas conformar o seu pensar a ela. A “racionalidade” programada nos circuitos, nas estruturas de dados simbólicos e nos programas do computador do computador deve ser apropriada pela pessoa que dele quer fazer qualquer uso. Esta apropriação pode ter sérias consequências para liberdade da razão humana.

O reflexo da pessoa e do contexto imediato, enquanto causa materialis, deve se conformar às “disposições e dispositivos” do computador. Por conseguinte, se estabelece não mais em sua pureza diretamente visível, mas através de um reflexo que doravante orienta os resultados informacionais e comunicacionais a serem obtidos pela constituição de um “dar-se da informática”.

O problema, iluminado pelo meio como causa finalis, se define enquanto tal pelas propriedades que adquire em sua formatação informacional e comunicacional. O “discurso do método informacional” ganha seu lugar privilegiado na ciência, orientando toda e qualquer disciplina segundo uma abordagem única. O sonho do método universal parece ter se materializado, ou melhor dizendo ter se “maquinado”. A “maquina universal”, cristalização do “método universal”, doravante guia a constituição de um qualquer “dar-se da informática”, assumindo parte do papel da causa efficiens.

Sob a luz do meio técnico-científico-informacional as causas aristotélicas se reconfiguraram. A metafísica de uma época define e conforma as causas em sua conjunção, ou nos termos propostos por Heidegger, os modos, solidários entre si, do “ato do qual se responde”. Não temos uma potencialização do ser humano como apregoam os entusiastas da informatização, mas uma despontencialização. A reflexão sobre esta despontencialização carece de ser feita com a máxima urgência. As gerações que se desenvolvem sob esta despontencialização podem estar diante de uma perda lamentável, sua essência humana, ou sua alma. Mas isto é o objeto de nossa conclusão, que não devemos antecipar.