de Castro – Uma analogia ao computador

Dentre as diversas figuras de Escher, aquela denominada “Mão com esfera reflexiva” (que denominamos bola de cristal) pode servir de forma magistral para revelar algo sobre a natureza do computador, segundo a ótica da teoria aristotélica das quatro causas, interpretada por Heidegger, “o que é a informática?”. Através de nossa análise da pretensa analogia desta imagem com o que chamaremos de “dar-se da informática”, esperamos poder re-velar a técnica da informação, a informática, na concretude1 do computador, do engenho de representação.

Retomemos, portanto, a imagem do Escher, utilizada como analogia do “dar-se e propor-se da informática”, e experimentemos estabelecer relacionamentos entre as causas aristotélicas e o que na imagem interpretamos como metáforas da informática. De pronto, sobressai na litogravura a mão que levanta e sustenta a bola de cristal. Pelo reflexo da pessoa, projetado sobre a bola, com o braço estendido e a mão tocando a bola, é possível identificar esta mão como pertencente a esta mesma pessoa, que se encontra refletida na bola. No entanto, o artista consegue criar uma incerteza sobre a proveniência desta mão, na medida que na litogravura o que temos retratado é apenas uma mão empunhando um bola de cristal sobre um fundo em branco, o resto é somente reflexo sobre esta bola.

Esse fundo vazio e difuso, do escuro para o claro, aparentemente uma parede sem nada, realça a presença da mão segurando a bola. Ainda mais, na medida que o mundo2 parece se resumir aquilo que se reflete sobre a bola. Ou seja, temos de aparente apenas um fundo, um “nada”, um braço e uma mão, e uma bola de cristal contendo tudo o mais refletido sobre sua superfície. Assim como a bola de cristal na imagem, a informática também se arvora a ser capaz de representar um mundo, prescindindo de qualquer outra referência que não seja ele própria e sua capacidade de reflexão deste mundo, desde que empunhada e elevada por uma pessoa à posição justa diante daquele que a vê.

Temos uma mão, portanto, sustentando uma bola, e pelo reflexo na bola de uma pessoa podemos supor (ou não) que esta mão é desta pessoa refletida, que estende sua mão até a bola, levantando-a e sustentando-a diante de si. Esta imagem da pessoa elevando e mantendo a bola de cristal diante de si, surge também como uma bela metáfora da relação fundamental entre pessoa e computador, supostamente representado pela bola de cristal na imagem, como vimos anteriormente. Qualquer computador precisa efetivamente de uma pessoa que o “anime”, mesmo que o faça segundo os requisitos de operação e de uso, dele próprio, o computador.

Um computador precisa de pessoas que individualmente o tomem, o elevem ao ponto de “utilidade” [Zuhandenheit] (condição de reflexão ótima, como na imagem) e o sustentem, diante de si mesmas, para que a técnica da informação, cristalizada na instrumentalidade do computador, ou seja, o computador enquanto engenho de representação possa vir a ser mobilizado e assim constituir um efeito ou produto, que doravante denominaremos “dar-se da informática”. O “dar-se da informática” promovido pela interação pessoa-computador põe em jogo outros elementos necessários a este “dar-se”. Como vamos ver a seguir esta interação é o ponto de partida original que elabora a coalescência dos elementos deste “dar-se da informática”.

Deste modo, podemos afirmar que a pessoa é um fator “vital” na constituição do “dar-se da informática”, e que este “dar-se”, por sua vez, é constituído pela coalescência de outros elementos, “vitalizados” pela pessoa. Tentaremos demonstrar, ao longo desta análise, como estes elementos entram na constituição deste “dar-se da informática”, fazendo ao mesmo tempo uma analogia com as causa aristotélicas.

De início, por sua ação vital, podemos tomar a pessoa como causa efficiens, no sentido aristotélico de arregimentador das demais causas na constituição deste resultado, o “dar-se da informática”. Como o próprio nome indica este “dar-se da informática” é constituído de “dados simbólicos”, que como o reflexo do mundo sobre a bola de cristal da imagem, se oferecem como causa materialis nesta constituição. “Dados simbólicos”, codificados e estruturados de modo a receber o tratamento lógico de determinados algoritmos instalados nos circuitos e programas do computador. “Algoritmos” estes que, por sua vez, se apresentam como causa formalis, nesta constituição, que ganha desde sua origem até sua conclusão final, finalidade ou propósito, sob a luz de um meio, que se dispõe como causa finalis.

Mas não vamos fechar tão sumariamente assim nossa investigação. Prossigamos com mais vagar e crítica. Para “se ver” na bola de cristal, juntamente com seu contexto3) imediato, a pessoa precisa sustentá-la e elevá-la à posição de ótima reflexão. Ou seja, em nossa analogia, a pessoa precisa buscar a aplicação adequada do computador, encontrar seu posicionamento justo diante de si mesmo, e, também diante de seu “mundo”, ou de seu contexto imediato, ou de seu “horizonte”. Um posicionamento onde seu próprio reflexo e também de seu contexto imediato, se estabeleçam da melhor forma possível para a operação da técnica; em nossa analogia, para a eficácia reflexiva da bola de cristal.

A bola de cristal é, assim como o computador um engenho técnico, ou seja, um engenho constituído segundo certa arte, visando a representação de atos e fatos pela reflexão. Poderíamos dizer que a bola de cristal e o computador são “arte-fatos”. No computador, como na bola, nos refletimos, nos podemos ver refletidos, pessoa e contexto, em todos os sentidos, do literal ao figurativo. No computador, como na bola, nos damos como “fatos técnicos”.

Assim como pessoa e contexto estão refletidos sobre a bola, também no computador estão refletidos ou registrados segundo a forma (causa formalis) ditada por seu estatuto técnico, dados simbólicos (causa materialis) da realidade. Dados simbólicos que me representam e representam meu contexto imediato, de acordo com regras de codificação e estruturação de dados, pré-estabelecidas pela construção do “arte-fato”. A representação de mim mesmo no computador se dá pela determinação do que se há de representar em termos de meu contexto imediato, e de que modo esta representação pode ser maquinada.

Desta maneira, a combinação e a interação pessoa-bola reafirmam, por meio de uma rica metáfora, interpretada da imagem de Escher, a importância da relação pessoa-computador, indicando de forma muito expressiva a constituição progressiva e interativa do “dar-se da informática”, pela projeção de uma pessoa e de seu contexto, capturados em termos de dados simbólicos e instruções lógicas, armazenados no computador. O que passa muitas vezes desapercebido em tudo isto é a regência sob a qual “se dá a informática”, aparentemente centrada na pessoa. Quem rege e como rege este “dar-se”, são algumas das questões críticas na constituição da informática, a serem ainda investigadas.

O computador, assim como a bola de cristal, vai pelo seu posicionamento adequado diante da pessoa, refletindo esta mesma pessoa e seu contexto, sempre segundo uma problemática, ou seja, segundo a abordagem, a interpretação e a tradução de um problema qualquer, a ser pretensamente solucionado, como problema de natureza informacional e comunicacional. Esta interpretação de um problema qualquer, em linguagem ou em termos informacionais e comunicacionais, se dá sob a luz do meio técnico-científico-informacional, assim como o reflexo na bola de cristal e a visão do mesmo reflexo, se dá graças a luz que emana da janela ao fundo, que pode ser localizada pelo próprio reflexo da pessoa e de seu mundo sobre a bola.

Assim sendo, o “dar-se da informática” se constitui de acordo com os ditames, ou sob a luz do meio técnico-científico-informacional, que hoje em dia, cada vez mais, atribui uma certa “coloração” a todos elementos co-responsáveis de sua constituição. Este meio se conjuga com os demais elementos como causa finalis. Ele orienta, desde o princípio, a constituição do “dar-se da informática”, até porque é imanente ao computador ou ao engenho, da mesma maneira que uma certa capacidade luminescente é imanente a própria bola de cristal, que se constituiu como arte-fato, segundo esta mesma capacidade luminescente.

Apresentam-se assim reunidas as condições para a constituição progressiva de um “dar-se da informática” em qualquer circunstância, muitas vezes à revelia da causa efficiens, ou seja, da pessoa que teoricamente conduziria e harmonizaria a coalescência de todos os elementos neste “dar-se”. Este é outro aspecto notável da essência da informática: ela se dá sempre como o reflexo de uma pessoa, de sua problemática e de seu contexto imediato, sobre o engenho de representação, o computador. Porém, cabe aqui uma questão: se suspeitamos do efetivo papel da pessoa como causa efficiens, a informática se daria sob a regência de quem ou do que, ou de que outro elemento que arregimenta as demais causas ou dirige a pessoa enquanto causa efficiens?

Com efeito, a informática nos coloca diante de uma reflexão necessária, especialmente ao analisá-la sob a ótica da teoria aristotélica das quatro causas, conforme apresentada por Heidegger. A pessoa, teoricamente como causa efficiens, parece ceder este lugar privilegiado para “algo”. Em nossa leitura metafórica da imagem do Escher, a mão desprendida de tudo que emerge no quadro sustentando a bola, e que na dúvida supomos ser da pessoa, aponta para este algo, ainda indefinido, que assume em parte o papel de causa efficiens.

Entretanto, podemos arriscar uma interpretação, a partir da própria imagem. Um aparente paradoxo parece se insinuar na representação: apenas uma bola e uma mão estão representadas, mas o reflexo de uma pessoa e seu contexto sobre a bola nos levam a crer que esta mão que eleva a bola é a mesma da pessoa refletida sobre ela. Um pequeno reflexo da mão que empunha a bola, na parte inferior da mesma, parece mesmo nos confirmar esta crença. Mas como se trata de um reflexo sobre a bola podemos estar sendo mais uma vez iludidos…

Todavia, este aparente paradoxo pode ser verificado no “dar-se da informática”. A pessoa se considera condutora e arregimentadora da coalescência dos elementos responsáveis por este “dar-se”. No entanto, algo no estatuto original do engenho, do computador, sobre o qual aparece este “dar-se”, está guiando e ilustrando este “dar-se”, o tempo todo. Do mesmo modo que na bola de cristal, o reflexo da mão sobre parece nos indicar que a pessoa tem o domínio da situação, embora a mão que emerge do nada elevando a bola nos quer dizer algo mais.

A natureza reflexiva da bola de cristal, fundada em seu estatuto técnico, operando em sintonia com a luz do meio, parece indicar algo de suma relevância em nossa análise. A bola, em analogia com o computador enquanto engenho de representação, está preparada para responder à luz, ou ao meio, bastando apenas ser tomada e elevada por uma pessoa, que, nesse sentido, se coloca subserviente ao estatuto técnico do arte-fato, para obter o reflexo pretendido. O “dar-se da informática” se constitui por uma ação humana, mas nivelada e ditada por algo que emana do estatuto técnico do computador e do meio que o ilumina.


  1. A noção de concretude exprime, por sua raiz de origem alquímica, o resultado do crescimento de diversos elementos, postos juntos para alcançar um outro corpo. 

  2. “Mundo pode ser novamente entendido em sentido ôntico. Nesse caso, é o contexto ‘em que’ de fato uma pre-sença ‘vive’ como pre-sença, e não o ente que a pre-sença em sua essência não é, mas que pode vir ao seu encontro dentro do mundo. Mundo possui aqui um significado pré-ontologicamente existenciário. Deste sentido, resultam diversas possibilidades: mundo ora indica o mundo ‘público’ do nós, ora o mundo circundante mais próximo (doméstico) e ‘próprio’.” ((HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo I. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 1986/1998, pág. 105 

  3. “O mundo mais próximo da pre-sença cotidiana é o mundo circundante (Umwelt).” (HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo I. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 1986/1998, pág. 107