Como muito bem coloca Merleau-Ponty: “Não foram as descobertas científicas que provocaram uma mudança na ideia de Natureza. Foi a mudança na ideia de Natureza que permitiu estas descobertas. Foi desta forma que uma concepção qualitativa do Mundo, impediu Kepler de admitir a lei da gravitação universal. Faltou a ele substituir, à Natureza dividida em regiões qualitativamente distintas, uma Natureza onde o Ser está por toda parte e é sempre homogêneo.”1.
Ainda segundo Merleau-Ponty, “o elemento novo reside na ideia de infinito, devido à tradição judeu-cristã”. A Natureza se desdobrando em naturans e naturata, tudo que possa ser interior à Natureza se refugia em Deus, a finalidade é sublimada em Deus; o sentido se refugia na Natura naturans, e a Natura naturata se torna produto, pura exterioridade.
Esta oposição naturans-naturata data do século XII (Averróis), e foi formalizada por Tomás de Aquino que conservou a palavra Natureza ao se referir à Natura naturata, lhe permitindo anexar, a ideia e o pensamento grego sobre a Natureza, na maior parte aristotélico, disponível através dos árabes, especialmente durante as cruzadas.
Formalizam-se assim duas filosofias da Natureza, uma para descrever a Natureza antes da queda, do pecado, e outra para depois da queda, onde o Bem e a Natureza não podiam ser tratados conjuntamente; desde então, ao se adicionar a ideia de criação infinita, desenvolvida por Nicolau de Cusa, a cisão entre Deus e a Natureza passa a ser uma tentação e tanto, que acaba tomando corpo em consequência das ideias de Descartes sobre Deus.
Esta breve análise retirada de Merleau-Ponty, serve como introdução para esta reflexão que se segue, ressaltando os seguintes fundamentos do “momento” cartesiano:
- primeiro, o que Moscovici denomina “a revolução filosófica e não científica” do século XVII, uma transformação da filosofia natural que os gregos constituíram e a Idade Média retomou, em “filosofia mecânica”, ou, em outros termos, da “metamorfose de uma filosofia que se esforça por justificar, classificar logicamente as observações ou os testemunhos, e apreender qualitativamente as substâncias em um cosmos “fechado”, em uma filosofia astutamente dedutiva e criadora de experiências, dominada pela ambição de quantificar o movimento dos corpos em um universo infinito.”2; esta “filosofia mecânica”, vai portanto muito além de uma simples transformação da filosofia natural, pela nova exigência de um tratamento matemático, como defende Cunningham, e com base no próprio título da obra maior de Newton — Philosophiae Naturalis Principia Mathematica3;
- sem esquecer, um ponto tangenciado por Merleau-Ponty, que no século XVII, todo sistema de filosofia natural, seja de um tipo aristotélico, neo-platônico ou macanicista, se propunha a descrever e explicar o universo inteiro e a relação deste universo com Deus, qualquer que seja sua concepção, empreendimento que envolvia também, explicitamente, uma preocupação com o lugar do ser humano e da Sociedade neste universo; “de fato, este era um pilar central de sua identidade como uma disciplina, tanto com respeito a seus temas, seus objetivos, seus propósitos, quanto às funções que servia”4;
- fica também claro na exposição de Merleau-Ponty que esta metamorfose, que Moscovici se refere, não foi um evento mas sim um processo como defende Crombie5, que veio se desenvolvendo desde a Idade Média, com base nas disputas filosóficas entre os porta-vozes das linhas de pensamento platônica (obra pouco conhecida então) e aristotélica (obra completa disponível na época), e o uso crescente de métodos indutivos e experimentais, possivelmente associados às artes e às técnicas que se desenvolviam nesta mesma época, conforme demonstra Moscovici e outros autores como Thuillier6;
- esta conjunção, cujo aspecto filosófico maior é enfatizado por Merleau-Ponty favoreceu, segundo Crombie, do lado da práxis de uma sociedade mercantilista que então se construía, a adoção e o aperfeiçoamento crescente de aparelhos e instrumentos de medição, o recurso maior a meios de controle para isolar fatores essenciais de fenômenos complexos, e o desenvolvimento de métodos de mensuração, que permitiram a gradativa predominância, na filosofia natural, do polo quantitativo da Natureza, e criando as condições para a revolução do século XVII, que associou a experiência à perfeição de um novo tipo de matemáticas e à nova liberdade que se tinha, de resolução de problemas físicos pelas teorias matemáticas;
A constatação inicial importante é que a “arquitetura de pensamento” platônica, fruto da corrente pitagórica-platônica-aristotélica, ao “in-formar” o lento período do século XII ao XV, foi adquirindo uma personalidade própria, distinta de sua essência, de seu “caráter” original, onde o significado de termos-chaves de sua linguagem, já não tinham mais o eco necessário na inteligência da sociedade da Alta Idade Média, exceção feita a algumas mentes privilegiadas.
Neste sentido, concordo plenamente com B. L. Whorf, ao afirmar que as linguagens e as configurações de posturas e reações que estas envolvem, não são meros instrumentos para descrever fenômenos, mas são também “formadores” de fenômenos, sua gramática contém uma cosmologia, uma visão compreensiva do mundo, da sociedade, da situação do ser humano, que influencia o pensamento, o comportamento, a percepção7.
Oswald Spengler, nesta mesma linha, afirma que toda filosofia cresce em conjunção com uma matemática, que a pertence, e garante: “toda cultura tem sua própria matemática”. Sua visão é que as matemáticas são uma arte e ao mesmo tempo uma ciência rigorosa, que assim como a concepção de Deus, contém o significado supremo da Natureza: “a coisa mais valiosa na matemática clássica é sua proposição de que o Número é a essência de todas as coisas perceptíveis aos sentidos”8.
Merleau-Ponty, M. (1995): La Nature. Paris, Seuil ↩
Moscovici, S. (1977): Essai sur l’Histoire Humaine de la Nature. Paris, Flammarion. ↩
Cunningham, A. (1995): “How the Principia Got Its Name”, em History of Science XXIX, USA. ↩
Cunningham, A. (1995): “How the Principia Got Its Name”, em History of Science XXIX, USA. ↩
Citado em Koyré, A. (1966): Etudes d’Histoire de la Pensée Scientifique. Paris, PUF. ↩
Thuillier, P. (1994): De Arquimedes a Einstein. Rio de Janeiro, J. Zahar. ↩
Citado em Feyerabend, P. (1993): Against Method (Third Edition). Londres, Verso. ↩
Spengler, Oswald (1961): The Decline of the West. London, Unwin. ↩