Segundo Georges Canguilhem (1971), sobre o qual se baseia em grande parte as reflexões que se seguem, “a noção de meio está em vias de se tornar um modo universal e obrigatório de apreensão da experiência e da existência dos seres vivos, e pode-se quase falar de sua constituição como categoria do pensamento contemporâneo”.
Para Canguilhem, a noção e o termo foram historicamente importados da mecânica para a biologia, na segunda metade do século XVIII: como noção mecânica, aparece em Newton, e como termo com o mesmo significado já está presente no artigo Meio da Enciclopédia. Mecanicistas franceses do século XVIII teriam chamado de “meio” o que Newton entendia por fluido, e cujo arquétipo único seria o éter.
Este forte vínculo mecanicista, na origem da noção e do termo, é sujeito a contestação, especialmente se tomadas em consideração as análises de dois historiadores: primeiro, Ioan P. Couliano (1984) que, em sua obra sobre o estatuto da imaginação no Renascimento, discorre sobre a importância da mediação e das operações, implicando a relação mútua entre alma e mundo1; e, segundo, Georges Gusdorf (1993) que, em sua extensa obra sobre o Romantismo, vê justamente no organicismo defendido pela Naturphilosophie, onde a noção de “meio” ganhou proeminência, uma reação total ao mecanicismo advindo de Descartes e reformulado por Newton.
Segundo Canguilhem, o problema a resolver para a mecânica, na época de Newton, era o da ação à distância, entre indivíduos físicos distintos. Este problema, perfeitamente solucionado, ou mesmo inexistente na Weltanschauung platônica e estoica, foi recriado pelo sistema de Descartes, ao combater a escolástica, e juntamente desmantelar a cosmologia herdada da antiguidade. Descartes considerava em seu sistema de ideias que o único modo de ação físico era o choque, ou seja, ele pressupunha o contato físico para que fosse possível uma ação entre dois corpos.
Canguilhem afirma que a partir de Galileu e Descartes, se teve que escolher entre pelo menos duas teorias de “meio”: uma teoria baseada em um espaço centrado, qualificado, onde “meio” (mi-lieu) é um centro; e outra, baseada em um espaço descentrado, homogêneo, onde mi-lieu é um campo intermediário. Pascal afirmava, dentro de uma concepção orgânica do mundo: o homem não está no “meio”, ele é o “meio”. Desta maneira, identifica-se desde a emergência da ciência moderna três sentidos para “meio”: situação mediana, fluido de sustentação, ambiente vital.
Para o sistema de Newton, a noção de um veículo da ação, de um fluido intermediário entre os corpos, inclusive penetrando-os, era, no entanto, indispensável. Desta forma foi restituída esta antiga noção, sendo possivelmente transposta pelo próprio Newton, da física para a biologia, quando ele tentou dar uma solução científica ao fenômeno da iluminação, em conjunto com uma explicação fisiológica da visão2.
Canguilhem dá um salto em seu percurso histórico, de Newton para Lamarck, e resgata, no pensamento deste último, uma nova apropriação da noção de “meio”. Primeiro, este último usa sempre o termo fluido no plural (fluidos), e se refere a água, o ar e a luz; designando um conjunto de ações, originárias destas fontes, que se exercem de forma exógena, sobre um ser vivo. Este conjunto que denominaríamos de “meio”, atualmente, Lamarck chamava de “circunstancias influentes”. Um gênero, que deve em sua conceituação e escolha terminológica, muito à astrologia, ainda predominante à época, e que inclui clima3, lugar e meio como espécies.
Em Lamarck, como nos primeiros teóricos do “meio”, as noções de circunstâncias, ambiência, tinham todo um outro significado, que o da linguagem atual. Evocavam, segundo Canguilhem, a ideia de uma disposição esférica, na qual a Terra volta a assumir sua posição central, em conformidade com uma cosmologia tipicamente aristotélica-ptolomaica.
Desta maneira, Lamarck, como fiel herdeiro de Buffon4, avança na criação das condições iniciais para a adoção do modelo físico-matemático de Newton, padrão de ciência àquela época, na explicação do vivente, através da idealização de um sistema de conexões com seu “meio”.
Para Canguilhem, em Lamarck, apesar das distorções implementadas em seu pensamento pelos neo-lamarckistas, que efetivamente adotaram o termo “meio”, não há uma ação das circunstancias, ou do “meio”, diretamente sobre o ser vivo. Para uma efetiva ação das circunstancias, se impõe a mediação da “necessidade”, uma noção subjetiva implicando a referencia a um polo positivo de valores vitais. Mudanças no “meio” encadeiam mudanças nas necessidades, que, por sua vez, encadeiam mudanças nas ações, que pela durabilidade, desenvolvem ou atrofiam a morfologia, que se conserva pelo mecanismo de hereditariedade, se a mudança for comum aos reprodutores da espécie.
Em Comte, Canguilhem reconhece a proposta de uma teoria biológica geral do “meio”, e considera sua originalidade de aplicação, como noção universal e abstrata da explicação do ser vivo, em seu “meio”. De acordo com Comte, não importa somente o fluido no qual o corpo se acha imerso, mas o conjunto total das circunstancias exteriores, necessária a existência, de cada organismo.
Predomina ainda a origem mecanicista, segundo Canguilhem, embora se possa perceber uma tentativa de concepção das relações entre o organismo e o “meio”. No caso do ser humano, Comte considera que a humanidade modifica o seu “meio”, por intermédio de uma ação coletiva.
Desta maneira, dentro do princípio de Newton, de ação-reação, Comte caminha para uma formulação quase matemática: em um “meio” dado, sendo também dado o órgão, pode-se encontrar a função, e reciprocamente. Afirma-se assim a relação do “organismo apropriado” e do “meio favorável”, como um conjunto de potências, cujo ato é constituído pela função5.
Darwin, por seu lado, secundariza a ideia de “meio”, de acordo com Canguilhem, ao ver na conjunção de dois mecanismos a explicação das novas formas: um mecanismo de produção de diferenças (variação), e outro de redução e de crítica das diferenças produzidas (concorrência vital e seleção natural). Para Darwin a relação fundamental é a relação dos seres vivos entre si6.
Canguilhem faz uma breve incursão pela Geografia do inicio do século XIX, apontando as figuras maiores de Ritter e de Humboldt. Para o primeiro, a história humana seria ininteligível sem a ligação do homem ao solo. A Terra deve ser considerada em seu conjunto como o suporte estável das vicissitudes da história. O espaço terrestre e sua configuração são, por conseguinte, objeto de conhecimento não só geométrico, não só geológico, mas sociológico e biológico. A Geografia tem que ver com complexos, complexos de elementos cujas ações se limitam reciprocamente, e onde os efeitos de causas se tornam causas por sua vez, modificando as próprias causas que lhes deram nascimento7.
Àquela época, a Geografia ainda era regida por uma visão, que a entendia como um estudo da projeção do Céu sobre a Terra. Uma “geosofia” que se dedicava a compreensão do “diagrama de forças” manifestado pela organização do espaço natural e humano. Ou seja, a análise da colocação em correspondência do Céu e da Terra, em dois sentidos: tipográfico (geometria e cosmografia) e hierárquico (físico e astrológico). A coordenação das partes da terra e a subordinação ao céu de uma terra de superfície coordenada, eram subentendidas pela intuição astrobiológica do cosmos.
Aceitava-se ainda a teoria hermética da simpatia universal8, uma forma de intuição vitalista do determinismo universal, que dava todo seu sentido à teoria geográfica do “meio”. Esta teoria supõe a assimilação da totalidade, sob a forma de uma esfera, centrada sobre a localização de um ser vivo privilegiado: o ser humano.
Canguilhem, concluindo sua trajetória histórica sobre a noção de “meio”, constata ainda que ela caminha, desta maneira, para se tornar um instrumento conceitual universal, com o poder de dissolução das sínteses orgânicas individualizadas.
Considerações sobre possíveis influências na formulação da moderna noção de “meio”, das descobertas científicas sobre o magnetismo, nos séculos XVIII e XIX, e das noções e conceitos procedentes da emergente ciência da eletricidade (por exemplo, a conceituação de “campo”), estão lamentavelmente ausentes deste trabalho crítico de Canguilhem.
Segundo uma visão herdada de Platão e Aristóteles, associada a ideia de Anima Mundi, que falaremos mais adiante. ↩
Na sua Ótica, Newton considera o éter coextensivo ao ar, aos olhos, aos nervos, até aos músculos, garantindo um “meio” contínuo, que permite a ligação de dependência do brilho da fonte luminosa percebida e o movimento dos músculos pelos quais o homem reage a situação. ↩
“Clima era uma noção indivisa, geográfica, astronômica e astrológica; indicava a mudança de aspecto do céu de grau em grau.” [Canguilhem, 1971] ↩
De acordo com Canguilhem, Buffon adota uma concepção das relações entre organismo e “meio”, arquitetada segundo duas ideias-força: a proposta pela cosmologia de Newton e a traduzida por sua interpretação do pensamento dos antropogeógrafos, dentre eles Bodin, Maquiavel e Montesquieu. ↩
A ligação do organismo ao “meio” é, portanto, calculável como função de um conjunto de variáveis, onde a ligação de igualdade, a equação, permite determinar a função através das variáveis, e as variáveis separadamente a partir da função, mantidas todas as demais coisas iguais. ↩
Segundo Canguilhem, em suas cartas, posteriores à edição da Origem das Espécies, Darwin passa a reconhecer a primazia da relação entre seres vivos e meio, desde que entendido este último como o conjunto de forças físicas. ↩
O título completo da monumental obra de Ritter, Erdkunde, indica sua dedicação por construir uma geografia científica, desembaraçada das intermináveis descrições de fatos sobre países e cidades: “Ciência da Terra em relação à natureza e à história humana ou uma geografia geral comparativa, como uma segura fundação para estudo e ensino nas ciências físicas e históricas”. [Livingstone, 1992, p. 141] ↩
Retratada pelo principio da similitude, que nos coloca diante do paradoxo enfrentado pela ciência tradicional. Este paradoxo consiste no fato de que o sujeito tradicional era vivido como múltiplo e que a unidade era objetivada, projetada no mundo, o Kosmos. O princípio da similitude, como explicação suprema, era uma espécie de recusa ao corte entre sujeito-objeto, entre causa-efeito. A unificação se fazia pela mediação deste principio que se revelava como o própria garantia da ordem do Kosmos e de sua afetação à unificação do sujeito. [Durand, 1979, p.141-216] ↩