António Fidalgo (Poster) – Discurso e poder

Não só Marx, mas também os outros pais das ciências sociais, como Weber e Durkheim, partiam do princípio de que era a acção, e não a linguagem, que determinava as relações de poder e que, portanto, o objecto de análise seria a acção. Ora é este princípio que é posto em causa com os contributos linguísticos do século XX, nomeadamente com a emergência e a afirmação das teorias da linguagem, Saussure, Wittgenstein, Austin, Chomsky, entre outros.

Poster atribui a Foucault o mérito de muito claramente ter exposto a íntima relação entre linguagem e poder, colocando no centro da atenção que dedica ao filósofo francês a noção de discurso. O discurso não pode ser analisado como simples forma da consciência ou expressão do sujeito, mas como uma forma de positividade. Retira-se assim o discurso do reino da pura subjectividade para o submeter a um conjunto de categorias objectivas. É antes a positividade do discurso que faz a síntese das variações subjectivas da consciência e do indivíduo. Em dois artigos cita Poster a passagem da Arqueologia do Saber em que a unidade do discurso é contraposta à unidade do sujeito, onde o discurso deixa de ser a manifestação majestosa de um sujeito que pensa, conhece e fala, para, pelo contrário, se tornar uma totalidade em que se subsume a totalidade no seio da qual se determina a dispersão do sujeito e respectivas discontinuidades.

Mas onde melhor sobressai a relação de linguagem e poder, em que o discurso é configurado como uma forma de poder e a concepção de poder pressupõe a actuação através da linguagem, é na concepção do “panopticon como discurso”. A questão fundamental é o da construção histórica e contextualizada do sujeito pelo discurso. “O desafio de Foucault é construir uma teoria do discurso que analise a razão à luz da história, revele o modo como o discurso funciona como poder e incida sobre a constituição do sujeito.”

O panopticon, o sistema de vigilância prisional, em que de uma torre central os guardas podiam observar a todo o momento os presos sem que estes os vissem, instituia um regime de autoridade que tudo vê, mas que é invisível. O propósito consistia em, mediante a percepção de estarem sempre a ser vigiados, os presos interiorizarem essa vigilância e, assim, os princípios e os valores que a justificavam enquanto causa final. Ora é este dispositivo de vigilância e de enformação psico-social que Foucault e Poster estendem à constituição do sujeito e da sociedade moderna.

Como entidade objectiva dominadora, mas ao mesmo tempo imperceptível. o discurso cumpre as funções do panopticon. “O discurso actua sobre o sujeito posicionando–o na relação com as estruturas de dominação de modo a que essas estruturas possam então agir sobre ele ou ela. A influência do discurso caracteriza-se principalmente por disfarçar a sua função constitutiva relativamente ao sujeito, aparecendo apenas após a formação do sujeito enquanto destinatário do poder.” O poder inerente ao discurso está na sua omnipresença face ao sujeito e nos ditames invisíveis que tal facto inculca neste.

O estruturalismo desta posição é evidente na negação de um sujeito primordial, autónomo, detentor de uma razão constituinte da linguagem, da sociedade e do mundo. A afirmação estruturalista, pelo contrário, é de que o sujeito é um construto de estruturas discursivas. O pós-estruturalismo, por seu lado, fica patente na multiplicidade, diversidade e até na contraditoriedade dos discursos enformativos do sujeito. Não há um discurso único, coerente, e, como tal, também não há um sujeito único, mas um sujeito espartilhado pela diversidade dos discursos a que é sujeito e de que é sujeito.

Discurso e poder são conceitos imbrincados e inseparáveis, e esse é o primeiro contributo fundamental que Poster vai buscar ao estruturalismo de Foucault. Só que a desconstrução da noção do sujeito moderno vai ainda mais longe na visão pós-estruturalista, na medida em que o sujeito é o resultado simultâneo e sucessivo de múltiplos discursos. Mais do que discurso e poder, há que falar de discursos e de poderes que concorrem entre si na formação e dominação do sujeito. Este é o segundo contributo que Poster retira da leitura de Foucault.

António Fidalgo, “O modo de informação de Mark Poster”. Comunicação e Poder