António Fidalgo – O modo de informação e o super-panopticon

Segundo Mark Poster os meios de comunicação de massas introduzidos no século XX, telefone, rádio, televisão e Internet, instauram novos tipos de acção e de discurso. A vida quotidiana transformou-se radicalmente no último século graças aos avanços tecnológicos e são essas transformações que distinguem especificamente o capitalismo avançado. São justamente estas transformações que há a ter em conta nos discursos que determinam os sujeitos. Para isso importa estudar as novas linguagens ditadas pelos novos média.

Só mediante a exploração dos novos tipos de discurso é que se entenderão as novas formas de dominação que caraterizam o capitalismo actual.

Muito mais do que simples dispositivos instrumentais que, na perspectiva do marxismo tradicional, em nada ou em muito pouco alterariam as relações de poder, Poster encara os sistemas de comunicação electrónica como linguagens determinantes da vida dos indivíduos e dos grupos em todos os seus aspectos, social, económico, cultural e político. Os meios e as formas de comunicação constituem tipos de discurso determinantes das relações de poder e de dominação nas sociedades contemporâneas. Daí que Poster defenda como tese geral que “o modo de informação decreta uma reconfiguração radical da linguagem, que constitui sujeitos fora do padrão do indivíduo racional e autónomo”. O modo de informação mostrará como o familiar sujeito moderno se transforma num sujeito “múltiplo, disseminado e descentrado, interpelado continuamente como uma identidade instável”.

Um dos exemplos mais desenvolvidos por Poster de como o modo de informação dissolve o sujeito estável da modernidade, autónomo e crítico, é a transformação operada pela passagem da informação impressa à informação electrónica feita em tempo real. O livro impresso é uma materialidade que tanto promove a substantividade do leitor e do autor, na medida em que os isola criando entre eles um hiato espaço-temporal. “A materialidade espacial da imprensa – a apresentação linear das frases, a estabilidade da palavra na página, o espaço ordenado e sistemático das letras pretas num fundo branco – permite aos leitores afastarem-se do autor. Estas características da imprensa promovem uma ideologia do indíviduo crítico, lendo e pensando em isolamento, fora da rede das dependências políticas e religiosas.” Do outro lado, o escritor, ao criar a materialidade da palavra impressa, estável, duaradoira, em contraposição à evanescência da palavra oral, vê afirmado o seu estatuto de autoridade. A imprensa constitui os indivíduos como sujeitos, entidades estáveis e fixas. A história da imprensa é também a história do sujeito tal como foi sendo concebido pela modernidade.

As comunicações electrónicas podem ser compreeendidas, e são-no frequentemente, dentro do quadro conceptual da imprensa ou da modernidade, apenas como melhorias de eficiência. Toda a evolução dos média, dos sinais de fumo aos satélites da comunicação, seria entendida a partir do mesmo princípio, o de expandir a voz humana. A teoria subjacente seria a mesma, a do indivíduo racional autónomo.

A proposta teórica de Poster de com o modo de informação entender as linguagens instauradas electronicamente é radicalmente contrária à teoria tradicional dos média, comum também ao marxismo e à teoria crítica. O hiato existente na imprensa entre autor e leitor também existe na dimensão electrónica, com emissor e receptores, mas a natureza dessa distância altera-se. “No modo de informação, a distância entre o o orador e o ouvinte transtorna os limites da auto identidade do sujeito. A combinação destas distâncias com o imediatismo temporal produzida pelas comunicações electrónicas, tanto os afasta como os aproxima. Estas distâncias opostas – opostas do ponto de vista da cultura impressa – reconfiguram a posição do indivíduo de forma tão drástica que a figura do self, fixa no tempo e no espaço, capaz de exercer controlo cognitivo sobre os objectos circundantes, não consegue ser mantida. A linguagem já não representa a realidade, já não é uma ferramenta instrumental que realce a racionalidade instrumental do indivíduo: a linguagem torna-se, ou melhor, reconfigura a realidade. E, ao fazê-lo, o sujeito é interpelado através da linguagem e não pode escapar facilmente ao reconhecimento dessa interpelação. As comunidades electrónicas removem sistematicamente os pontos fixos e estáveis, as fundações que eram essenciais à teoria moderna”.

Mark Poster analisa o mundo da publicidade televisiva, aliás no seguimento das análises de Jean Baudrillard, para mostrar como as perspectivas tradicionais são insuficientes na análise. De um ponto de vista humanista, os ‘spots’ publicitários são enganadores, ilusórios, induzem a decisões irracionais por parte dos consumidores. Vistos pelo marketing são poderosos instrumentos para criarem uma procura efectiva para o produto. Olhados de uma cultura democrática, “minam o pensamento independente do eleitorado, diminuindo a sua capacidade para distinguir o verdadeiro do falso, o real do imaginário e estimulam um estado de passividade e indiferença”. Na perspectiva do marxismo, apenas estimulam falsas necessidades dos trabalhadores, alienadores da sua condição e desmotivadores do propósito revolucionário.

Ora, segundo Poster, nenhuma destas perspectivas, apesar de válidas no seu âmbito, “aborda o papel principal da publicidade televisiva na cultura contemporânea, nenhuma revela a estrutura alterada da linguagem dos anúncios e, mais importante, nenhuma dá atenção à relação entre a linguagem e a cultura na constituição de novas posições do sujeito, isto é, novos lugares na rede de comunicação social.” Claro que a publicidade televisiva pode ser olhada apenas como mais uma forma de comunicação unidireccional tal como acontece na imprensa e na rádio, onde um emissor emite para um receptor. Porém, ao contrário destes modos comunicativos unidireccionais, na publicidade televisiva não há possibilidade de uma intervenção, de um feedback, de uma resposta, mesmo a posteriori. Os anúncios de publicidade criam uma realidade própria, uma hiper-realidade, misturam facilmente imagens, som e escrita, permitem a introdução da voz-da-autoridade. As referências e as associações que os anúncios publicitários criam são autónomos face à realidade que pretendem influenciar, hábitos de consumo, mudanças de atitude e outros.

Mediante a dissociação com a realidade, os anúncios permitem uma identificação do espectador com a mensagem e os artigos que veiculam, ao nível de emoções e desejos. O que se pretende justamente é que com essa dissociação se alcance uma integração e identificação do espectador com o produto anunciado. As fronteiras do real quotidiano desaparecem no anúncio e, assim, tudo se torna possível. No reino da publicidade, as mais ínfimas hipóteses, as probabilidades mínimas, ficam ao alcance de qualquer um, mediante um simples gesto de consumo. Desta análise, tira Poster a conclusão de que linguagem tradicional, referencial do mundo real se altera. “O paradigma linguístico realista é abalado. O anúncio televisivo trabalha com simulacros, com invenções e com imaginações.” Só que o desfasamento da realidade da vida quotidiana e da realidade simulada nos anúncios, em que o espectador se vê mergulhado, não é esporádico, mas um fenómeno contínuo, “todos os dias e por longas horas”.

Ainda no seguimento de Baudrillard, Poster considera que o mundo dos bens é cada vez mais atravessado de múltiplas significações e interpretações. “Os bens são afastados do domínio da teoria económica ou comentário e visto como um código complexo. A chave para o consumo não é uma tendência irracional para uma ostentação, mas a inserção dos indivíduos numa relação de comunicação na qual recebem mensagens sob a forma de artigos para consumo.” O referente do anúncio não é um objecto de compra ou consumo, não é objectivo, mas um simulacro criado pelo próprio anúncio.

Ainda que Poster não ligue directamente o conceito baudrillardiano de simulacro à análise que faz das bases de dados é provavelmente nestas que melhor se descortina o mundo hiper-real dos simulacros. Os objectos de uma base de dados são segmentados em múltiplas entradas que se combinam e recombinam em sínteses diversas, e às quais eles se reduzem. Linguisticamente as bases de dados são de extrema pobreza narrativa, “estruturas de informação intrinsecamente limitadas e restritas”. A experiência particular, a percepção de um qualquer objecto do mundo quotidiano, é reduzida a entradas “que podem ser caracterizadas como caricaturas”. Mas à pobreza linguística corresponde, na proporção inversa, uma operacionalidade tremenda na classificação e na velocidade de encontrar a informação.

De modo algum se pode falar de uma verosimilhança entre o objecto da base de dados e o possível correspondente do mundo da experiência inidividual. Tratam-se de identidades diferentes. Ora é na constituição das identidades assentes em bases de dados que Poster liga o tema à análise que Foucault faz do panopticon. Tal como o mecanismo prisional de vigilância determinava o comportamento e a identidade dos reclusos, assim também as bases de dados, de que mais e mais se socorrem as instituições públicas, determinam as identidades dos indivíduos com que estas instituições tratam. “Os indivíduos são ‘conhecidos’ das bases de dados, têm ‘personalidades’ distintas e em relação às quais os computadores ‘trratam-nos’ de formas programadas. Estas identidades são pouco inocentes uma vez que podem afectar seriamente a vida do indivíduo (…). O indivíduo é transformado em relação à sua identidade e é constituído na base de dados. Simplesmente porque esta identidade não tem uma íntima relação com a consciência interna do indivíduo, com os seus atributos definidos, não minimiza, de forma alguma, a sua eficácia. Com a disseminação das bases de dados, as tecnologias da comunicação invadem o espaço social e multiplicam a identidade dos indivíduos, independentemente da sua vontade e intenção, sentimento ou cognição.”

As bases de dados constituem, segundo Poster, como um super-panopticon, na medida em que “operam de forma contínua, sistemática e sub-reptícia, acumulando informação acerca dos indivíduos e compondo-os em perfis.” Neste caso a vigilância não depende de qualquer tipo especial de arquitectura, antes exerce-se no decorrer da vida normal e quotidiana dos indivíduos. O super-panopticon não interfere com o indivíduo, não o constrange ou o limita nos seus movimentos. O indivíduo é, de certo modo, inteiramente livre. O que o super-panopticon faz é registar e tratar informaticamente os rastos que a utilização dos meios electrónicos deixa atrás de si, utilização progressiva uma vez que facilita a vida social, económica e institucional do próprio indivíduo. A enorme capacidade de armazenamento de dados e a extrema facilidade de transmissão desses dados entre computadores assegura a eficiência da vigilância imperceptível e indolor do super-panopticon.

António Fidalgo, “O modo de informação de Mark Poster”. Comunicação e Poder