de Castro – As bases de dados como discursos

O mais interessante na abordagem que Poster faz das bases de dados, no entanto, é o entendimento que faz delas como discurso no sentido foucaultiano. “As bases de dados são discurso, em primeira instância, porque afectam a constituição do sujeito.” Tal como o discurso também a base de dados é entendida, não como expressão ou acção de um sujeito prévio, mas como positividade constituinte de sujeitos. A base de dados liberta-se do seu criador ou utilizador para se tornar numa realidade autónoma que cresce e estende o seu poder sobre os próprios utilizadores.

Ao entender as bases de dados como discurso Poster demarca-se da abordagem que liberais e marxistas fazem das bases de dados, nomeadamente como instrumentos de dominação de um governo central burocrático ou como factores da disputa no controlo dos meios de produção. Para Poster a limitação destas abordagens reside no facto de encararem o campo social principalmente como campo de acção, descurando a linguagem como factor informante (que dá forma) da cultura e da sociedade. “Como forma de linguagem, as bases de dados têm efeitos sociais apropriados à linguagem, ainda que também tenham, certamente, relações diversas com formas de acção.”

Entendidas as bases de dados como discurso, objectivas, e por isso anteriores aos sujeitos que criam, dever-se-á proceder por um lado à abstracção da sua formação e até da sua pertença. Desde Saussure que a estrutura linguística, a língua, é vista como elemento social anterior à fala, ao uso individual da linguagem. Mas a língua também não existe sem as falas que a realizam e de algum modo a modificam. O que interessa aqui, porém, são as regras estruturantes da língua, as regras de formação e de transformação. “Se considerarmos as bases de dados como um exemplo da noção foucaultiana de discurso, encaramo-las como ‘exterioridades’, e não como constituídas pelos agentes, e procuramos nas suas ‘regras de formação’ a chave para o modo de constituição dos indivíduos.”

A estrutura das bases de dados é de listas “organizadas, digitalizadas com o objectivo de tirar partido da velocidade electrónica dos computadores”. Mas cada elemento ou registo destas listas é classificado por múltiplas entradas ou campos, o que permite a ordenação das listas por cada um destes campos e, assim, ter tantas listas — e modos de busca! — quantos os campos em que o elemento é classificado. Da alteração da ordenação por campos resultam diferentes perfis dos elementos integrantes da base de dados. Pode-se ordenar por número de entrada, nome, diversos campos de morada, rua, bairro, cidade, idade, sexo, mas também por rendimentos, hábitos de consumo, e quaisquer transacções electrónicas, de comunicação ou de compra. Basta cruzar uma procura por idade e rendimentos, por exemplo, para saber exactamente quais as idades a que correspondem os maiores rendimentos, ou cruzar moradas e hábitos de consumo para extrair da base de dados informações relevantes de um ponto de vista socio-geográfico. Se a facilidade e a velocidade de acesso a uma informação são as características primeiras de uma base de dados electrónica, não deixam também de ser relevantes as características da sua portabilidade, isto é o facto de serem facilmente reproduzidas, copiadas e enviadas ad libitum para qualquer outro sistema informático (a expansão da Internet, veio a simplificar e a incrementar enormemente essa portabilidade), a sua expansão e, em particular, a faculdade de serem cruzadas com outras bases de dados.

Consoante a finalidade e a estrutura da base de dados assim se altera o perfil do indivíduo registado. “Estas listas electrónicas tornam-se identidades sociais adicionais à medida que cada indivíduo é constituído pelo computador como agente social, variando em função da base de dados em causa.” Sendo apanhado ou introduzido em diferentes bases de dados, os indivíduos vão ganhando perfis específicos. O mesmo indivíduo tem seguramente um perfil diferente enquanto cliente de um supermercado na base de dados que é possível aí fazer dele, nomeadamente através do pagamento electrónico, que enquanto sócio de um clube de futebol. As bases de dados constituem ‘grelhas de especificação’ que são uma das regras de formação do discurso em termos foucaultianos, na medida em que os elementos ou registos são relacionados, agrupados, classificados, derivados uns dos outros como objectos de discurso. Mais do que em qualquer outro tipo de discurso, psicológico, clínico, económico, etc., as bases de dados possuem uma performatividade linguística. “A ênfase é colocada no aspecto performativo da linguagem, naquilo que a linguagem realiza para além de denotar e conotar. As bases de dados são apenas máquinas performativas, mecanismos de produção de identidades recuperáveis.”

Acrescente-se ainda que o aspecto discursivo das bases de dados sai mais reforçado na medida em que são os próprios indivíduos que vão alimentando as bases de dados que os enformam enquanto sujeitos. É tal como no modelo saussureano, em que a língua se reforça mediante o uso que dela se faz na fala. Quanto mais falada for uma língua tanto maior é a sua independência face às falas individuais. No que concerne às bases de dados são os próprios indivíduos que precisam e lucram com sua a utilização, deixando com isso novos traços electrónicos automaticamente introduzidos e que, assim, as completam e ao mesmo tempo diversificam. A vida contemporânea requer cada vez mais a utilização dos computadores e da sua ligação em rede, possibilitando dessa forma a constituição de bases de dados maiores. Quem utiliza um telemóvel, usa um cartão electrónico, passa pela via verde das auto-estradas, está voluntariamente a contribuir para a alimentação da base de dados, isto é do discurso que o enforma enquanto sujeito. É, aliás deste modo, que se esboroa a fronteira entre o público e o privado. Os actos privados dos indivíduos, com quem fala ao telefone, quanto tempo, o que compra, quando e onde, passam a constar de bases de dados. O que, diga-se, representa o triunfo do super-panopticon. “A indesejada vigilância da escolha individual torna-se parte de uma realidade discursiva através da participação voluntária do indivíduo vigiado. Nesta situação, o jogo de poder e discurso tem uma configuração singular, uma vez que o vigiado é quem fornece a informação necessária para a vigilância.”

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